A BOLA E O SANGUE: GOL CONTRA DO MEU FLAMENGO - André Luiz do Nascimento Germano

22/06/2020 11:27

Torcedores do Flamengo no Maracanã. Fonte: Coleção MIS.

 

Justamente na noite de sexta-feira da semana em que o Maracanã, maior templo do futebol mundial, entre glórias, crimes, saudades e resistências, completa 70 anos, dois pontos me inquietaram enquanto ouvia Raimundo Fagner tocar altíssimo no som do vizinho.

O primeiro é que, para minha tristeza e revolta, meu time do coração, o Clube de Regatas do Flamengo, se aliou ao Presidente da República mais bizarro de nossa história recente, acelerou a volta do futebol no Rio de Janeiro e em troca ganhou uma Medida Provisória que o libera para transmitir seus jogos como mandante no Campeonato Carioca, dando um xeque-mate na Rede Globo. O famoso “me ajuda que eu te ajudo”. Para conseguir o acordo, meu clube sujou não só as mãos de sangue, mas se atolou em meio a cadáveres produzidos por esse Estado assassino. Desgosto me define. Se meteu numa briga entre um genocida e a emissora golpista que ajudou a construir esse mesmo monstro que agora tenta combater. Por parte do CRF, um oportunismo sanguinário, em meio a, ainda crescente, maior crise sanitária das nossas gerações, o que mancha nossa história e me entristece profundamente.

O segundo ponto é que essa Medida Provisória, que foi amplamente comemorada pelos torcedores flamenguistas e vendida como uma grande vitória pelo presidente rubro-negro, Rodolfo Landim, acaba com o entendimento de que um jogo só pode ser exibido se determinada emissora possuir acordo com os dois clubes envolvidos na partida. De acordo com o que entendi do texto, o direito fica restrito ao mandante a partir de agora. Para o gigante Flamengo, de fato, é “bom pra caceta”. Não tem outro termo. Temos a maior torcida do país e teremos facilidade de negociar e vender bem, individualmente, nossas transmissões. Para o futebol brasileiro, que envolve paixão, cultura, tradição e que nós amamos dizer que “não é só futebol”, é ruim. Muito ruim! Tende a criar um abismo ainda maior entre grandes e pequenos (futebol brasileiro não é só os 12 principais clubes e muito menos só a primeira divisão).

As disparidades econômicas tendem a aumentar, porque os contratos não serão decididos coletivamente, mas individualmente com cada clube. Com o atual modelo de assinaturas de Pay Per View já vinha sendo segregador e desigual, mas com a MP vai ser ainda mais. É a mercantilização total e irrestrita da nossa maior paixão. Pequenos clubes regionais sumirão do mapa de vez. O que será de Londrina, Bangu, América Mineiro, Paysandu, Náutico, Criciúma, Guarani, ABC de Natal, Vila Nova, Botafogo da Paraíba, Ituano, Boa Esporte, Remo, Volta Redonda, Jacupiense, Brasiliense e tantos outros clubes que movimentam a paixão pelo futebol em todos os cantos desse país e terão que negociar seus contratos de transmissão absolutamente sozinhos? Como costuma dizer o craque Luiz Antônio Simas, é a cultura do evento destruindo o evento da cultura. Daqui dez anos, se essa bizarrice se consolidar e for aprovada no Congresso Nacional (por enquanto ainda é “só” uma medida provisória), veremos as consequências catastróficas para os clubes que movimentam a louca paixão pelo futebol em todas as frestas desse país e para o pouco equilíbrio que nos restava, mesmo dentro da própria elite do futebol brasileiro.

O fato é que boa parte dos torcedores dos times grandes estão pouco se lixando. No fundo, não gostam de futebol, gostam apenas de ver seus times ganhando e só. Landim, o presidente do Flamengo que tem suas mãos mergulhadas em sangue neste momento (importante lembrar que já era criminosa a condução do caso dos dez Meninos do Ninho), obviamente vai vender tal feito como uma vitória gigantesca para o clube e para os grandes do futebol brasileiro. E é mesmo! Mas para saúde e a diversidade da nossa maior paixão, é um tiro no peito e na bola. Um baita de um gol contra!

Por fim, como falar de disparidades econômicas entre clubes de futebol numa sociedade que banaliza desigualdades sociais, naturaliza a miséria e ignora barbaridades cotidianas? Historicamente, ao invés de construirmos pontes, sempre construímos muros que nos separam e afastam.

                                                           

André Luiz do Nascimento Germano

Mestrando em Geografia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Professor, suburbano, carioca, flamenguista e mangueirense.

andreabcgermano@gmail.com