A CONSTITUIÇÃO DO MEIO TÉCNICO-CIENTÍFICO EM GOIÁS OU A SUBSUNÇÃO REAL DO TERRITÓRIO AO CAPITAL - Lucas Maia
Objetivamos com este texto discutir o processo de instauração do meio técnico-científico em Goiás. A tese que articularemos funda-se na ideia geral segundo a qual o meio técnico-científico é o meio geográfico produto, bem como necessário à produção propriamente capitalista.
Utilizamos o termo meio técnico-científico em sentido distinto do emprestado por Milton Santos. Não dispomos aqui de muito espaço para desenvolver esta análise, a qual está sendo elaborada em maior detalhe em nossa pesquisa de doutoramento já em fase de conclusão. Para este autor, o elemento central na constituição do meio técnico-científico-informacional é a técnica. Esta adquire centralidade em sua elaboração teórica. A rigor, para ele, a humanidade em seu desenvolvimento histórico-geográfico passou, do ponto de vista do desenvolvimento técnico, por três grandes etapas: o da constituição de um “meio natural”, no qual os sistemas técnicos das comunidades humanas não dispunham ainda de meios suficientes para alterar de modo substancial ou mesmo parcial a superfície terrestre; um “meio técnico”, compreendendo um grande lapso de tempo na história da humanidade, e no qual a sociedade já dispõe de sistemas de técnicas capazes de alterar e de emprenhar de modo mais substancial a superfície terrestre, com estradas, construções, cidades etc.; e um terceiro período, denominado por ele de “meio técnico-científico-informacional”, engendrado após a segunda guerra mundial e consolidado com a “terceira revolução industrial”, a “revolução científico-técnica”, no qual a ciência, a técnica e a informação são elementos estruturantes do novo meio geográfico.
Para ele,
Essa união entre técnica e ciência vai dar-se sob a égide do mercado. E o mercado, graças exatamente à ciência e à técnica, torna-e um mercado global. (...) Neste período, os objetos técnicos tendem a ser ao mesmo tempo técnicos e informacionais, já que, graças à extrema intencionalidade de sua produção e de sua localização, eles já surgem como informação; e, na verdade, a energia principal de seu funcionamento é também a informação. Já hoje, quando nos referimos às manifestações geográficas decorrentes dos novos progressos, não é mais de meio técnico que se trata. Estamos diante da produção de algo novo, a que estamos chamando de meio técnico-científico-informacional (SANTOS, 1997, p. 190) (grifos meus).
Ou seja, trata-se de um novo momento na história da humanidade no qual a ciência, a técnica e a informação regidas pela égide do mercado organizam e produzem também um novo meio geográfico, o meio técnico-científico-informacional. Para nós, esta concepção, apesar de aparentemente ser bastante fundamentada, encontra novidade, onde, na verdade, existe aprofundamento de processos que são engendrados em momento bem anterior. De nossa parte, discutimos o processo de elaboração e desenvolvimento do meio técnico-científico a partir da teoria marxista do capitalismo, que em linhas gerais consiste num desenvolvimento sem precedentes na história da humanidade de capacidades técnicas instaladas no território.
Para Marx, um capital qualquer divide-se sempre em capital constante e variável. O capital constante, por sua vez, divide-se em capital fixo e circulante. O capital constante é aquele investido em meios de produção (instalações fabris, maquinaria, matérias primas etc.). O capital variável é aquele investido em força de trabalho (salários). A tendência espontânea do capital, como demonstrou Marx em O Capital é o capitalista investir cada vez menos em capital variável e cada vez mais em capital constante, isto possibilita, entre outras coisas, um aumento sem precedentes na capacidade produtiva de determinado capital em particular. O aumento da produtividade, bem como o desenvolvimento próprio do capitalismo, faz com que haja um processo monstruoso de concentração e centralização de capitais, processo este que gera capitalistas cada vez poderosos e capacidades produtivas cada vez ciclópicas. A grande contradição de todo este processo, como demonstrou Marx, é que o desenvolvimento espontâneo do capital produz dificuldades imanentes a este desenvolvimento, sendo a tendência declinante da taxa de lucro médio o resultado mais agressivo. Seno a força de trabalho a única geradora de valor novo, à medida que seu número relativo, em que pese ocorra seu crescimento absoluto, diminua em relação ao capital constante, a tendência é haver cada vez menos geração de mais-valor. A cada ciclo do capital, esta tendência se afirma e as consequências, a longo prazo deste processo, são as crises cíclicas do capitalismo, que faz com este se readeque sempre, criando fases sucessivas no desenvolvimento do capital, as quais Viana (2003; 2009) denomina regimes de acumulação de capital.
De nossa parte, nos limites deste estudo, o que nos interessa é apresentar, mesmo que de forma bastante sumária, como este desenvolvimento espontâneo do capital organiza o meio geográfico, constituindo aquilo que denominamos de meio técnico-científico. Mantemos a mesma terminologia que Milton Santos, embora emprestemos sentido diferente ao termo. Para nós, o meio técnico-científico não é resultado da “revolução científico-técnica”, operada nos anos de 1970 em diante. Para nós, o desenvolvimento mesmo do capitalismo já cria em essência uma nova articulação geográfica dos lugares e insere novas técnicas no território. Quando a produção capitalista já se estabelece como relação dominante, ela já cria as condições de sua reprodução e estas necessariamente tem caráter geográfico, ou seja, se instalam e se reproduzem no território.
O elemento novo que o capitalismo cria, com suas capacidades produtivas extremamente elevadas é a possibilidade de instalar capitais fixos por todo o território: pontes, estradas, linhas de ferro, portos, aeroportos, sistemas de energia elétrica, cabos de fibra ótica etc., os quais Santos e Silveira (2002) denominam de “sistemas de engenharia”. Estes são o produto do desenvolvimento da produtividade gerada pelo crescimento das capacidades produtivas do capital. Quanto mais desenvolvida é a capacidade produtiva de determinado país, cidade, região, estado etc., maior é sua possibilidade de “desviar” parte dos capitais para áreas não diretamente vinculadas à produção direta. Quando isto acontece, a possibilidade de desenvolvimento de um meio técnico-científico está dada, pois há um espraiamento de capitais fixos para o conjunto do território, ou seja, para além das unidades de produção propriamente ditas.
Isto se opera onde o capital se instala e se desenvolve como relação de produção dominante. Assim, o jogo escalar e temporal tem que ser considerado na análise dos lugares. Por exemplo, a produção capitalista se inicia em Europa, por volta dos séculos XVII e XVIII, é ali e neste período, portanto, que se inicia o meio técnico-científico, ficando as demais áreas do globo dominadas ainda por largas áreas de meio técnico, mas principalmente pelo meio natural. Com o desenvolvimento da sociedade capitalista, o capital como relação social de produção vai se estendendo para as demais áreas do globo e onde se instala, começa já de pronto a criar as condições de sua reprodução, das quais a criação do meio técnico-científico é condição indispensável.
Da mesma feita, por exemplo, o Brasil esteve desde sempre subordinado ao capital, mas aqui não se tinha nenhum meio técnico-científico antes mesmo do século XIX, pois é somente a partir daí que vamos ter pelas terras brasílicas relações de produção capitalistas se instalando e se desenvolvendo de maneira mais generalizada. Mesmo considerando o território brasileiro de forma isolada, também aqui a relação temporal e escalar se afirma, pois enquanto em algumas áreas já fosse perceptível a constituição de um meio técnico-científico, como no Sudeste do país, e sobretudo São Paulo e Rio de Janeiro, nas demais regiões, isto estava longe de acontecer.
É o caso de Goiás, objeto de investigação deste artigo. Pelas terras goianas, só podemos falar de um meio técnico-científico propriamente dito após a década de 1970, período a partir do qual as relações capitalistas de produção começam a se generalizar pelo conjunto do território goiano. Contudo, não é de pronto que as relações capitalistas se instalam pelas terras goianas. Isto se dá com mediações, justaposições, substituições parciais. Onde primeiro se faz sentir o peso do capitalismo em Goiás é através da instalação das infra-estruturas de transporte, energéticas etc. já, de certa forma, produto do desenvolvimento das relações capitalistas à escala nacional. Aqui, a articulação do local e do nacional se faz presente. A construção de Goiânia, de Brasília, os transportes daí derivados, a infra-estrutura energética etc. só podem ser compreendidos dentro deste quadro macro de consolidação do capitalismo no Brasil. Da mesma forma, a consolidação do capitalismo no Brasil está interligada à sucessão dos regimes de acumulação em escala mundial. Quando da instauração do meio técnico-científico em Goiás, vive-se a constituição do regime de acumulação conjugado, o que implica na generalização, pelo mundo, das relações de produção capitalistas[1]. Ou seja, o local, o nacional e o global formam uma totalidade indissolúvel. Só podemos compreender um à luz dos conhecimentos gerados na análise dos outros. É somente neste trânsito de escalas que poderemos ter uma leitura mais concreta da constituição do meio técnico-científico em Goiás.
O estudo de Cano (2007) apresenta uma leitura interessante sobre o processo de concentração industrial no Brasil de 1930 a 1970. O objetivo central da obra é demonstrar os mecanismos sociais e econômicos que culminaram na concentração do capital industrial em São Paulo e como, por consequência desta concentração, São Paulo se torna o pólo dinâmico da economia brasileira fazendo com que as demais “regiões” do país se constituam, sob certos aspectos, como periferias. Após discutir o processo inicial de industrialização do Brasil, que tem seus inícios por volta da segunda metade do século 19, mas que, ainda por esta época, indo até aproximadamente o final dos anos de 1920, se constituía de várias economias regionais pouco integradas. Não havia, por esta época, a constituição de um mercado nacional integrado. Isto se devia como demonstram Santos & Silveira (2002) a vários fatores: dificuldades com os transportes, comunicações, interesses das oligarquias regionais etc. eram todos fatores que determinavam a existência de várias ilhas econômicas pelo país.
Este processo começa a se alterar com a política do Estado Novo, política esta que buscava representar de modo mais direto os interesses da então burguesia nacional de caráter urbano-industrial que se consolidava notadamente em São Paulo. De 1930 a 1955 constitui-se um primeiro estágio de industrialização que culmina nos processos de concentração industrial em São Paulo. A este período, Cano deu o nome de “industrialização restringida”. Era caracterizada fundamentalmente pelo fortalecimento do capital nacional (privado e estatal), pela produção intensiva de bens de consumo não-duráveis etc. Isto não implicava, contudo, como ressalta o autor, que não houvesse no Brasil indústrias de bens de produção. Esta é, segundo afirma, um dos grandes erros de interpretação acerca do processo de industrialização do Brasil. Em que pese fosse menos pujante, não era, contudo, inexistente no país esta categoria de indústrias. De 1956 a 1970 dá-se o período denominado pelo autor de “industrialização pesada”, onde a entrada de capital internacional se dá de modo avassalador, onde a agricultura começa seu longo processo de industrialização, áreas “atrasadas” do Brasil são completamente integradas nos circuitos industriais de produção, circulação e consumo de mercadorias. Trata-se, em verdade, da constituição, em escala mundial, do chamado regime de acumulação conjugado, sendo a década de 1970 o palco final de sua crise (VIANA, 2009), (HARVEY, 1994).
A constituição do parque industrial pesado brasileiro é concomitante à constituição do meio técnico-científico em Goiás, pois é a partir daí, da formação do complexo agroindustrial brasileiro que temos a produção do meio geográfico em Goiás a partir de relações de produção tipicamente capitalistas. Este processo todo se efetiva à medida que vai se consolidando o poderio econômico do capital urbano-industrial de São Paulo sobre o conjunto do território brasileiro. A consequência disto é a efetivação de São Paulo como pólo econômico industrial do país, com a consequente concentração de capitais derivados de tal processo (CANO, 2007).
No período da “industrialização restringida”, Goiás vivenciou, como demonstrou Estevam (2004), a “modificação das estruturas”. O território goiano estava sendo emprenhado de objetos geográficos (estradas, rodovias, ferrovias, hidrelétricas, cidades modernas etc.), as relações de produção já começavam a sentir os vapores vindos das áreas “modernas” do Brasil, a política estatal já começava a incluir em seus mecanismos elementos da racionalidade administrativa capitalista etc.
É, contudo, a “industrialização pesada”, devido sua capacidade produtiva ser grandemente mais poderosa, que permite integrar num único circuito todo o território nacional. A primeira fonte de expansão para o “sertão” destas capacidades produtivas é sem sombra de dúvidas as áreas de cerrado, donde o norte de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul são os alvo prioritários. Estas áreas vivenciam profundas alterações, sobretudo nas relações de produção, durante o período da industrialização pesada.
E podemos dizer que a “modernidade” chega nestas áreas por meio da industrialização dos processos agrícolas. Assim, não precisamos temer em afirmar que a indústria goiana surge e se desenvolve no e a partir do campo. A agroindústria é produto direto deste processo. Mas agroindústria agora está vinculada ao complexo industrial metal-mecânico de São Paulo. E tudo isto está articulado à geopolítica das empresas multinacionais, mas também algumas de capital nacional, ligadas à produção de tecnologias agrícolas: a conhecida Revolução Verde.
Sob o rótulo de “Revolução Verde”, podemos colocar o processo de integração direta da produção agrícola em Goiás à produção capitalista. Como assinalam Estevam (2004), Bertran (1978; 1988) etc. a década de 1970 assiste a entrada das relações de produção capitalistas como relações dominantes no território goiano. Até então, havia, de maneira muito rudimentar e subordinada, as relações de assalariamento no território goiano. Um pouco nas cidades pequenas e vivendo quase que exclusivamente da atividade agrícola, um pouco nas fazendas de gado etc. Durante a construção de Goiânia e Brasília disseminou-se um pouco mais, mas mesmo assim, ficaram confinadas nos marcos territoriais determinados pelas duas atuais metrópoles. Ou seja, até então, Goiás, do ponto de vista das relações de produção, tinha em seu território um conjunto de relações não-capitalistas de produção. Estas eram subordinadas ao capital mercantil que era por sua vez subordinado ao capital industrial que já se fortalecia em São Paulo.
A “industrialização pesada” permitiu ao capital industrial no Brasil subordinar realmente o conjunto do território nacional. Goiás se insere neste contexto de transformações. Obviamente que tudo não acontece de pronto e do dia para a noite tudo o que era não-capitalista torna-se relação de assalariamento, separação do produtor e dos meios de produção etc. É, em verdade, um processo que entra na década de 1970 e avança até os dias atuais. Naturalmente que isto se opera, tal como salienta Godói (2012), com o apoio dos “agentes locais” ou, para utilizar uma terminologia mais adequada, das classes dominantes locais (burocracia estatal e grandes latifundiários). O estudo da autora demonstra como a atuação dos políticos goianos, notadamente os do sudoeste, bem como a articulação dos grandes latifundiários locais foram fundamentais para que esta integração direta do território goiano se efetivasse. Assim, não se trata de compreender Goiás como vítima de um processo avassalador que a tudo devora. Mesmo sendo sua ação subordinada, não é, contudo, desprezável na efetivação do processo de integração.
Generaliza-se, a partir de então, o trabalhador assalariado (volante, bóia-fria etc.) no campo goiano. O campesinato vai paulatinamente sendo expulso de suas terras, a figura do agregado, meeiro etc. vai ficando cada vez mais distante das paisagens dos campos goianos. O grande fazendeiro vai a cada dia incorporando em suas propriedades métodos novos de produção. Há a entrada no território goiano de novos sujeitos sociais que expressam esses novos ares que entram pelo estado de Goiás. Os gaúchos e os paulistas (capitalistas ligados à produção agrícola modernizada), principalmente nas regiões sul, sudeste e sudoeste do estado confirmam isto. É chegado o momento da produção tecnicizada: chega com muita força o trator, a colheitadeira, as sementes melhoradas, os agrotóxicos, os fertilizantes químicos, o aumento de área plantada de commodities, como a soja, milho, sorgo etc. Vários trabalhos demonstram em dados estatísticos esta afirmação[2].
A leitura ficaria incompleta se não colocássemos à luz do dia a intervenção estatal como elemento constituinte de todo o movimento de incorporação das áreas goianas à lógica da produção industrial nacional. Foram vários os planos, projetos, programas realizados pelo Estado com esta intenção. O elemento político entra aqui como campo catalisador das atividades produtivas modernas nas áreas de cerrado como um todo e mais especificamente em Goiás. Desde a década de 1970, entrando pelos anos 1980, 1990 e em toda a primeira década dos anos 2000, foram inúmeros os programas e projetos elaborados e executados pelo Estado com vistas a “modernizar”, ou seja, estabelecer a produção capitalista propriamente dita no território goiano.
Sobre isto, afirma Müller:
É que o Estado erigiu-se como capitalista financeiro por excelência, facultando a existência de capitais agrícolas de alta composição orgânica. Vale dizer, o capital financeiro estatal posto à disposição da agricultura amalgamou-se com o capital social total agrícola alterando as condições de distribuição dos capitais privados que certamente se davam através de uma “taxa média” de lucro. Em outros termos (...), o Estado planifica a agricultura para o lucro, no interior da qual opera uma certa “taxa média” que distribui os capitais privados e, por força, as diversas formas de riqueza produtiva (MÜLLER, 1989, p. 57) (grifos meus)
Em que pese não se possa concordar com todas as afirmações de Müller (1989) sobre esta matéria, sua interpretação teórica do Estado como capitalista financeiro no que se refere ao processo de industrialização da agricultura me parece bem acertada. Isto pode ser observado em Goiás através da incidência de vários programas governamentais desde a década de 1970 até os anos 2000. Entre os objetivos destes programas, pode-se destacar: modernizar o território através da instalação de infra-estrutura de transportes, de energia, de comunicação etc.; incentivos agrícolas, sobretudo o crédito rural, que visa, via de regra, modernizar a produção (compra de insumos, agrotóxicos, tratores etc.).
Instituído em 1975, o POLOCENTRO – Programa de Desenvolvimento dos Cerrados incide sobre o território goiano até finais da década de 1980 e durante todo este período aumentou consideravelmente a área plantada em Goiás, aumentou a produtividade, mecanizou a produção, aclimatou plantas ao cerrado, construiu rodovias, aumentou o consumo de energia elétrica, aumentou a concentração fundiária no estado etc.
O PRODECER – Programa de Cooperação Nipo-Brasileiro para Desenvolvimento do Cerrado é na verdade uma continuidade das políticas de financiamento da agricultura por parte de instituições estatais nas áreas de cerrado. Como destaca Inocêncio (2002) vem na esteira de projetos como POLOCENTRO, RADAP – Programa de Assentamento Dirigido do Alto Parnaíba, PCI – Programa de Crédito Integrado do Cerrado etc. O PRODECER se estabelece nas áreas de cerrado em três etapas: 1980 em Minas Gerais (PRODECER I); em 1987 em Goiás, Mato Grosso e Bahia (PRODECER II); e a partir de 1995, Maranhão e Tocantins (PRODECER III).
De forma mais restrita que o POLOCENTRO, o PRODECER consiste em projetos de colonização nos quais os colonos são experientes em lidar com tecnologias agrícolas, são subsidiados para usá-las etc. Como afirma Ferreira (2001), o impacto do PRODECER não foi tão grande quanto o do POLOCENTRO, mas de qualquer forma criou condições para que determinadas áreas também fossem incorporadas à dinâmica da produção agrícola industrializada, integrando novos produtores ao complexo agroindustrial.
O PROFIR – Programa de Financiamento de Equipamentos de Irrigação, instituído a partir de 1982 visava, sobretudo, criar condições financeiras para que as propriedades continuassem com sua produtividade alta mesmo nos períodos de estiagem. Financiou, através do crédito rural, a compra destes equipamentos, bem como sua instalação, assessoria técnica etc. Parte do recurso também poderia ser destinada à eletrificação das propriedades, compra de maquinários etc.
Com o fim das linhas de financiamento do POLOCENTRO em 1989, instiui-se de 1989 até 1992 o PNDR – Programa Nacional de Desenvolvimento Rural, que investiu em vários seguimentos da produção agrícola, além de destinar parte dos recursos à melhoria de infra-estrutura, como pavimentação de rodovias.
Estevam (2004) cita vários outros programas estatais que tiveram forte influência no processo de modernização agrícola em Goiás: “Amazônia Legal”, que recebia vários recursos através da SUDAM, que incorporava áreas do antigo norte goiano, hoje Tocantins; PROTERRA, que pavimentou algumas rodovias, principalmente a Belém-Brasília, o PRODOESTE (CODEG, 1972), que, entre outras coisas, pavimentou a rodovia que liga Jataí-Rondonópolis etc. Cita o POLOAMAZÔNIA, que com suas infra-estruturas de ocupação da Amazônia Legal também chegou a Goiás, o Programa de Desenvolvimento da Região Geoeconômica de Brasília, que objetivava dinamizar as áreas circunvizinhas ao Distrito Federal, com melhoria nos equipamentos urbanos das cidades vizinhas, modernização da produção agrícola, investimento em infra-estrutura de transportes, energia etc.
Como ressalta Moraes (2004) Também durante a década de 1990 e 2000 os programas governamentais continuam. Vide, por exemplo, o papel do governo do estado através dos Planos Pluri-anuais – PPA, que visam desde ajuste fiscal, racionalização da administração pública, alocação de recursos em infra-estrutura para agroindústria e outros projetos industriais etc.
Assim, como se pode observar, a instituição do meio técnico-científico em Goiás é um processo longo que se inicia por volta da década de 1960 e caminha até hoje. Como vimos, as pré-condições foram sendo operadas durante os anos de 1930, 1940 e 1950. Até este momento, o território goiano é subsumido formalmente ao capital, não predomina, ainda, no território as relações de produção propriamente capitalistas. A chegada dos anos de 1960, mas sobretudo a década de 1970 abre caminho para uma alteração drástica no território. É chegado o momento da subsunção real do território ao capital. As relações de produção propriamente capitalistas vão se tornando dominantes pelo conjunto do tecido social. A implicação disto, para objetivo de nossos estudos é que também o meio geográfico vai sendo alterado. O anterior meio técnico já emprenhado de objetos geográficos é agora subvertido novamente. Torna-se, por exigência de adequação às novas relações de produção, um meio técnico-científico, no qual os capitais fixos vão sendo instalados pelo território e este passa a ser mais um ponto na rede global da produção.
Para finalizar, lembro Estevam (2004) que afirma ter sido seletivo o processo de modernização do território goiano, pois: somente algumas culturas foram privilegiadas, principalmente aquelas voltadas para exportação; somente os grandes produtores tiveram possibilidades de se desenvolverem efetivamente; e espacialmente esta modernização esteve e está concentrada no centro-sul do estado.
Referências
AMIN, S. & VERGOPOULOS, K. A questão agrária e o capitalismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
BERTRAN, P. Formação econômica de Goiás. Goiânia: Oriente, 1978.
______. Uma introdução à história econômica do Centro-Oeste do Brasil. Brasília: CODEPLAN; Goiânia: UCG, 1988.
CANO, W. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil: 1930 – 1970. São Paulo: UNESP, 2007.
CODEG. A economia goiana no PRODOESTE. Goiânia: Governo do Estado, 1972.
ESTEVAM, L. O tempo da transformação: estrutura e dinâmica da formação econômica de Goiás. Goiânia: UCG, 2004.
DA SILVA, E. R. A economia goiana no contexto nacional: 1970-2000. Goiânia: UCG, 2007.
FERREIRA, D. F. Análise das transformações recentes na atividade agrícola da região sudoeste de Goiás: 1970-1995/96. (Dissertação de mestrado). Uberlândia: IE/UFU, 2001.
GODOI, C. N. O sudoeste goiano e a rede técnica produtiva. Fluxos e dinâmica no interior do território. (tese de doutorado). Goiânia: IESA/UFG, 2012.
GUIMARÃES, A. P. A crise agrária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.
INOCÊNCIO, M. E. O PRODECER e a territorialização do capital em Goiás: o projeto de Colonização Paineiras. (dissertação de mestrado). Goiânia: IESA/UFG, 2002.
MORAES, R. de S. A câmera escura: gestão territorial e as novas territorialidade do capital em Goiás. (dissertação de mestrado). Goiânia: IESA/UFG, 2004.
MORAIS, W. P. de. Dinâmica espacial no município de Goianésia: o caso da agroindústria canavieira. (Dissertação de mestrado). Goiânia: IESA/UFG, 2001.
MÜLLER, G. Complexo agroindustrial e modernização agrária. São Paulo: HUCITEC: EDUC, 1989.
PINSK, J. (org.). Capital e trabalho no campo. São Paulo: HUCITEC, 1977.
SANTOS, M. & SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002.
______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: HUCITEC, 1997.
VIANA, N. Estado, democracia e cidadania: a dinâmica da política institucional no capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
______. O capitalismo na era da acumulação integral. São Paulo: Ideias & Letras.
Lucas Maia
Doutorando pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia do IESA/UFG.
Professor do Instituto Federal de Goiás – Campus Anápolis.
Sócio da AGB – Goiânia.
e-mail: maiaslucas@yahoo.com.br
[1] Para uma discussão acerca do conceito e sucessão dos regimes de acumulação, cf. (VIANA, 2003; 2009). Para este autor, um regime de acumulação é constituído por uma determinada forma de articulação entre processo de valorização do capital, forma estatal e relações internacionais. Ao longo da história do capitalismo, desenvolveu-se os seguintes regimes de acumulação: regime de acumulação primitiva de capital, regime de acumulação extensivo, regime de acumulação intensivo, regime de acumulação conjugado e regime de acumulação integral.
[2] Cf., para Goiás mais especificamente, Ferreira (2001); Da Silva (2007); Estevam (2004); Morais (2001) etc. Para o Brasil e mundo, Guimarães (1982); Pinsk (1977); Amin e Vergopoulos (1977), Müller (1989) etc.
__________________________________________________________________________________________________________________________________________
Ficha bibliográfica:
MAIA, Lucas. A constituição do meio técnico-científico em Goiás ou a subsunção real do território ao capital. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 4, 20 de fevereiro de 2013. [ISSN 22380-5525].