A DUREZA NA LIDA E IDENTIDADE DA RAPADURA - Isis Maria Cunha Lustosa
O ensaio fotográfico, embora apresente um conjunto de imagens sobre o mesmo tema, expõe uma representação simbólica abrangente. O olhar fotojornalístico, registrou de modo singular a coletânea visual e, a partir da abordagem cultural, o alcunho “a dureza na lida e identidade da rapadura”. Portanto, ao tecer esse texto a narrativa brota do meu olhar geográfico e, metaforicamente, este torna-se o leitor e redator das essências captadas pelo fotógrafo naquele lugar de identidade, ganha-pão e risco – o Engenho de Rapadura – localizado em pleno Sertão do Cariri, no município de Barbalha, no Ceará, estado nordestino líder na produção desta raspa dura no fabrico e consistência.
Coadunamos, fotojornalista e pesquisadora, ao dizer que dentre as quatorze fotografias elegidas para o ensaio em questão existem subconjuntos de leituras de mundo inseridas na totalidade das imagens. Este engenho de rapadura revela a dura lida de homens sertanejos, a maioria jovens, expostos às subcondições de trabalhos, aos riscos momentâneos e periódicos de acidentes e às doenças ocupacionais advindas. Entretanto, estes mesmos sertanejos, continuam persistentes na produção da rapadura para manterem a identidade desta, onde grande parte da fabricação se sustenta de maneira tradicional.
Esta condição captada pela lente da câmara torna-se aparente nas imagens contemporâneas reveladas, seja em algumas partes das estruturas do engenho focalizadas, seja em utensílios demonstrados e, mais ainda, no ato de metamorfosear o caldo de cana-de-açúcar em rapadura. Portanto, o ensaio fotográfico é capaz de evidenciar traços históricos da antiga indústria da rapadura no Cariri, sobre a qual o escritor cearense, José Alves Figueiredo Filho, publicou em 1954 a obra “Engenhos de Rapadura do Cariri”. Segundo o autor, o Cariri dispunha de 284 quatro engenhos operantes, sendo 65 deles no município de Barbalha, responsáveis por 8,52 toneladas de rapadura.
Embora a ênfase sobre a produção cearense da rapadura no século XX, a força imagética do ensaio não se sustenta em revelar a historicidade. A proposta da crônica também não cabe esse propósito na narrativa sucinta. Mesmo assim, é compromisso provocar reflexões e colocar em perspectiva temporal e espacial as ações humanas na produção atual da rapadura. O evidente engenho se auto denuncia pelas fotografias por algumas delas revelarem que, ainda, se mantém como árduo o trabalho com a cana-de-açúcar, desde a colheita, a aragem da palha, a moagem e a transformação do doce caldo em melado. Logo, no sólido produto, este resistente como o sertanejo – a rapadura.
Na minha ótica a partir desse ensaio fotográfico, ainda que considere todo o ato de fabricar a rapadura como uma dura lida, também percebo o modo habilidoso e artesanal que o caldo de cana é manejado pelos homens do engenho, mesmo atravessando diversas fases arriscadas de fervura. Os carirenses, acostumados com o calor no Sertão, transparecem por meio das imagens como imunes as intensas quenturas no engenho. A identidade na produção da rapadura e/ou a intensidade da sua fabricação seriada força os trabalhadores numa postura bípede horas a fio no manuseio de grandes tachos e pequenas formas de alumínio, peneiras dentre outros tantos utensílios para evitar que toda a cana-de-açúcar se transforme em etanol, extinguindo de vez a rapadura – tijolo naturalmente adocicado que foi símbolo de progresso no Nordeste do Brasil, região ainda detentora da maior de produção nacional.
Contudo, essa fabricação contemporânea, digo assim, rumou a rapadura para outros públicos e/ou mercados, como o turismo. Isso pode ser conferido em espaços de visitação, seja aquele a explorar sobre o cultivo da cana-de-áçucar e produção da rapadura, como o Museu da Rapadura no município de Aquiraz (primeira capital) do Ceará, seja o ambiente difusor explorador da produção da cachaça e rapadura na Microrregião do Brejo Paraíbano, o também Museu da Rapadura, situado no Campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no município de Areia, Patrimônio da Humanidade o qual adota em seu calendário turístico o Festival da Cachaça e da Rapadura alcunhado de Bregareia.
A rapadura, atualmente, não mais o remoto símbolo econômico de Senhores de Engenho, metamorfoseia-se como a identidade da seiva da cana-de-açucar engrossada nos tachos por meio de um exercício preciso nas mãos dos maestros do caldo na fervura. Estes sertanejos fazem o manejo da seiva, pacientemente, enquanto intercalam fervura e purificação quando esse caldo é peneirado. Na persistente ebulição o caldo torna-se viscoso e dourado escorrendo para os tachos em formas assimétricas no ar, antes de virar o melado. Este, mais consistente é raspado e adequado em utensílio dando-lhe o formato de tijolos. Por fim, a rapadura é marcada como gado com as iniciais do engenho e arrumada na esteira de palha, uma após a outra como barras de ouro da identidade dulcificada da seiva ou garapa da cana fervida e solidificada no sul do Ceará, região dotada de outras tantas marcas culturais.
O olhar sobre o tema constrói, o ensaio, a partir dos elementos do contexto. Imagens com movimentos sequenciais como os de uma industria com produção em serie. O trabalho do fotojornalista olha também para os movimentos do melado usando o panning (técnica adotada pelo fotógrafo para enfatizar o movimento na fotografia) e, dentro de uma mesma composição, pode-se ver elementos estáticos como os trabalhadores, e com movimentos, o melado da cana-de-açucar.
Isis Maria Cunha Lustosa (autora do texto)
Doutora em Geografia
Pesquisadora no Laboter/ IESA/ UFG
Eduardo Soares Queiroz (autor das imagens)
Editor de Fotografia no Jornal Diário do Nordeste
Figura 1 e 2: Aragem da cana-de-açucar.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 3 e 4: Moagem da cana-de-açucar.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 5 e 6: Fervura do caldo da cana-de-açucar.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 7: Manejo do melado da cana-de-açucar pelo sertanejos.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 8 e 9: Manejo do melado no tacho e nas formas.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 10 e 11: Mistura do melado da cana.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 12: A rapadura encerada nas formas.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 13: Fabrico do tijolo de rapadura.
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
Figura 14: Rapadura produzida em “serie e ferrada como gado”
Foto: Eduardo Soares Queiroz, 2012.
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Ficha bibliográfica:
LUSTOSA, Isis Maria Cunha. A dureza na lida e identidade da rapadura. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 5, 23 10 de julho de 2013. [ISSN 22380-5525].