A FINITUDE HUMANA - Inglas Ferreira Neiva dos Santos

25/01/2013 12:00

“A morte não é terrível.
Passa-se ao sono e o mundo desaparece
– se tudo correr bem.”

Norbert Elias
 

Considerações iniciais


Não há como negar a finitude humana. Estudos, descobertas, crenças, absolutamente nada nos tira o direito e o dever da morte. O homem sempre foi aterrorizado pelo medo de morrer, não somente pelo findar da vida, mas por toda a incerteza da “hora extrema”. A preocupação com o desconhecido, o depois que não se domina permeado por incertezas e inseguranças que culminam na certeza de um partir definitivo. Nenhum outro animal tem consciência do seu fim, somente os humanos. Segundo Nobert Elias “não é a morte, mas o conhecimento da morte que cria problemas para os seres humanos” (2001, p.11). Tal ideia nos leva a refletir sobre a existência de uma espécie de sofrimento antecipado da morte, como se o inevitável corroborasse nossa já constatada insignificância.

Viver, segurar com mãos firmes as rédeas da vida, ir, vir, agir com demasiada liberdade gozando dos variados prazeres que a vida possibilita; sentir a pujança do corpo que corresponde aos desejos pulsantes da vida parece-nos encantador e ao mesmo tempo se consolida como poder que outrora se curvará diante da morte. Esse paradoxo desestabiliza a compreensão humana, exacerba uma evidente fragilidade.

Historicamente a morte relativamente neutralizou e neutraliza os homens, exatamente pela sua chegada invasiva e por vezes inesperada, criaram-se em diferentes épocas e lugares, simbolismos diferentes para representá-la ou explica-la. Os mitos pós-morte tentam responder o que a racionalidade não consegue, criou-se então principalmente nas religiões cristãs a ideia da morte enquanto passagem, recomeço para outra vida, - de preferência compensativa, mais plena, livre de vícios e sofrimentos da existência terrena.  Paralela a essa construção produziu-se mecanismos de controle da vida. Viver nessa vida “criada e aceita” requer do indivíduo posturas coerentes e acertadas. Cuidar e orientar os indivíduos para uma existência adequada, permeada por princípios éticos e morais se constituiu com frequência, em uma tarefa de cunho religioso, - é preciso atenuar a ideia da morte enquanto fim absoluto, vazio sem significação, entretanto para isso é fundamental que a existência terrena tenha sido permeada por caminhos que justifiquem uma passagem, de certo modo tranquila, decente que valide uma possível existência pós-morte.

Essa representação da morte enquanto algo inevitavelmente limitador, mas ao mesmo tempo – através de mecanismos explicativos, consoladores – como algo que redimensiona uma provável existência, se institui em tentativa de atenuar a vulnerabilidade humana em relação à morte e de certo modo em falsa ilusão de entendê-la e quem sabe aceitá-la. Norbert Elias parece assim compreender:

Graças a um poder de imaginação exclusivo entre as criaturas, vivas vieram gradualmente a conhecer de antemão o fim como conclusão inevitável de toda vida humana. Mas junto com essa previsão do próprio fim provavelmente ocorreu, desde o início, uma tentativa de suprimir esse conhecimento indesejado e encobri-lo com noções mais satisfatórias. E aí a singular capacidade humana de imaginação veio em sua ajuda. O conhecimento indesejado e as fantasias encobridoras são, portanto, provavelmente fruto do mesmo estágio de evolução. (NOBERT, 2001, p. 43)

 

Os funerais e a memória

 

Morrer embora seja uma ação natural, ao longo do tempo assume características culturais. Diferentes sociedades encaram a morte e tratam-na com particularidades, as quais vão desde a dor, a aceitação e o ritual que envolve a despedida do morto. No segundo milênio, devido às dificuldades, de sobrevivência e as intempéries que reduzia a segurança das sociedades – peste, fome - convivia-se com mais frequência com o perigo da morte, ver um ente querido morrer, lidar com o cadáver, falar da putrefação dos corpos soava com certa normalidade. Referências à morte, a sepultura e a todos os detalhes do que acontecia aos seres humanos nessa situação não eram sujeitas a uma censura social estrita (NOBERT, p.30)

Para Philippe Ariès, a partir do século XX, - principalmente após a Primeira Guerra Mundial, notou-se significativa mudança a respeito do enfrentamento da morte, sobretudo no Ocidente. Esta mudança no comportamento diante da morte coincide com a efetivação do processo de industrialização e urbanização, norteado por uma sociedade visivelmente mais individualizada, que enfatiza e realça a limpeza, expurgando todo o inconveniente das fraquezas humanas como a doença e a morte. A morte nessa concepção passa a ser extremamente incômoda, não evidentemente para o morto, sobretudo para a família que conviverá com a constatação da finitude. Segundo o autor, vê-se uma espécie de “interdição” da morte, devendo sê-la pouco visível, o menos pública possível, priva-se da lida com morto, do sofrimento, inclusive o da família, daí a ideia de terceirização do trabalho com o moribundo e posteriormente com o corpo. Essa postura de esconder até mesmo do doente a proximidade do fim, confirma a ideia de que controlar ou conduzir a morte com discrição, ponderação e racionalidade é premissa das sociedades modernas. Portanto, à medida que se camufla a morte, mais se fantasia a sua inexistência, ou pelo menos adia o inevitável fim. Essa postura, talvez ajude a elucidar a acentuada dificuldade em aproximar dos enlutados: o que dizer, como dizer em uma situação de tamanho melindre.

Mesmo considerando que nos últimos tempos a expectativa de vida tem se alargado e com ela o possível adiamento da morte, convivemos ainda com os rituais funerários, - embora cada vez mais organizados e realizados fora de casa, - que ainda exercem considerável temor e assombramento. Nessa perspectiva, na contramão das conquistas científicas e dos avanços, morrer nos parece um assunto extremamente desagradável. Não dar conta da morte e de todo furor que ela causa – como o desequilíbrio, a dor dos que ficam, o medo da interrupção abrupta – contribui para uma postura de alheamento da morte. Assim, falar pouco e não conviver com  pessoas no leito da morte se constitui como uma forma de privação do sofrimento. Nobert Elias faz uso do termo “recalcamento”, entendendo que o espetáculo da morte não é mais corriqueiro, suscitando a ideia de que esquecer a morte no curso normal da vida favorece seguir em frente, a normalidade. (NOBERT, p.15). Para o autor, as sociedades contemporâneas tendem então, alijar-se do tema como forma de preservação ao sofrimento.

Os funerais são formas simbólicas de homenagem aos que já se foram. É preciso que a memoria dos mortos sejam devidamente registradas para que a perenidade do tempo não sucumba à lembrança do morto. Para Gagnebin, é preciso, inclusive lembrar os que, por algum motivo não foram lembrados, como forma de respeito e registro dos que viveram.

Ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nomes, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua “narrativa afirma que o inesquecível existe” mesmo se nós não podemos descrevê-los. Tarefa altamente política: lutar contra o esquecimento e a denegação é também lutar contra a repetição do horror [...](GAGNEBIN, 2006, p.47).

Rememorar, lembrar através das representações simbólicas constitui-se em dualismo. Por um lado objetos, túmulos, funcionam como uma espécie de acalanto para os que ficam, por outro, a memória acionada, vivificada significa também reviver a dor, a ferida da perda, do não esquecido. Segundo Nobert Elias as inscrições funerárias são formas de registros dos mortos aos vivos, sem elas o tempo se encarregaria de dissipá-las.

O que está escrito na pedra é uma mensagem muda dos mortos para quem quer que esteja vivo um símbolo de um sentimento talvez ainda articulado de que a única maneira pela qual uma pessoa morta vive é  na memoria dos vivos. Quando a cadeia da recordação é rompida, quando a continuidade de uma sociedade particular ou da própria sociedade humana termina, então o sentido de tudo que seu povo fez durante milênios e de tudo que era significativo para ele também se extingue. (NOBERT, 2001, p. 41)

 

Dor e Memória

Já mencionamos que a despeito de todas as conquistas humanas a morte continua um mistério para as melhores mentes. As explicações religiosas se incubem de explicar e convencer sobre a ideia de passagem. São fantasias de certa forma complacentes, que revigora o medo da extinção total. “O medo de nossa própria transitoriedade é amenizado com ajuda de uma fantasia coletiva de vida eterna em outro lugar” (NOBERT, p.15).  Essas fantasias “institucionalizadas” adquirem veracidade e sem dúvida é conveniente acreditarmos que temos mais valor do que efetivamente temos – se temos também não sei. O fato é que uma porção significativa da sociedade gravita em torno desta concepção, pelas convenções ou por comodidade.

Alguns já disseram que a morte democratiza, já que todos vão, indiscriminadamente. Mas sem dúvida essa verdade desagrada, uma vez que não se entende porque a vida pode ser interrompida na melhor fase, sem justificativas e possibilidade de prorrogação. Largar os sonhos e as ações pela metade se configura em uma impotência colossal - é constatar a nossa finitude plena. É aceitar que ora somos imprescindíveis, pois relações e ações giram em torno de nossa existência. Se ora acabamos e a dinâmica da vida continua, acabamos em nada, e se não acabamos em nada seguimos inexoravelmente solitários.

Se o morto não existe mais, existem os vivos, a dor da perda de um ente amado para alguns é dilacerante. A reorganização sem a figura presentificada de quem já se foi é humanamente difícil, daí a memória - é ela que impossibilita o esvanecimento de tudo, estabelece uma espécie de laço com o passado, com o ausente, cria-se representações do que se foi, constroem-se subjetividades peculiares que são confortáveis. Mas é isso: a memória constitui-se na lembrança do que não mais se vê, não mais se tem.

Portanto a linha que separa a vida da morte é tênue. Compreender que fronteira separa o agir, o falar, o andar, o querer e o pulsar da frieza e inércia de um cadáver é pretensão até então inalcançada. Entender o que outrora tinha vida e posteriormente não restará, senão na lembrança, é sem reservas, um anseio humano que esbarra na constatação da nossa fragilizada existência.

Referências


ARIÈS, Phillipe. História da Morte no Ocidente. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos, seguido de, envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006.

 

 

 Inglas Ferreira Neiva dos Santos
Secretaria de Educação do Estado de Goiás – Ap. de Goiânia
inglashisto@hotmail.com

 

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Ficha bibliográfica:
SANTOS, Inglas Ferreira Neiva dos. A finitude humana. In: Territorial - Caderno Eletrônio de Textos, Vol. 3, n 4, 25 de janeiro de 2013. [ISSN 22380-5525]