A FUNÇÃO DA LINGUAGEM NA INTERIORIZAÇÃO DOS SIGNIFICADOS NAZISTAS NAS CRIANÇAS ALEMÃS DAS DÉCADAS DE 1930 E 1940 - Tila de Almeida Mendonça
Durante o período em que a Alemanha viveu sob a regência do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) a língua alemã sofreu um processo natural e, ao mesmo tempo - sem que isso seja contraditório - forçado de reformulação conceitual das palavras existentes. Isso é, se por um lado o instrumento oficial do Estado responsável pela divulgação de ideias, artes, notícias, etc era controlado pelo linguista Goebbles, que escrevia até mesmo os discursos de Hitler, articulando as palavras para que essas possuíssem os significados mais essenciais para a divulgação de suas ideologias, por outro lado essas palavras foram incorporadas na vida cotidiana, bem como outras foram criadas ou modificadas em sentido a partir da dinâmica natural de socialização. Essas modificações nas significações conceituais dos termos constituem um processo normal, visto que as palavras não seguem a dualidade direta propostas por Saussure, principalmente quando não representam um objeto físico, e portanto não só não nascem prontas como sofrem mudanças de sentido ao longo do tempo e contexto, o que pode ser percebido nos estudos conduzidos pelos historiadores, filólogos e filósofos das correntes de História das Idéias, Linguistic Turn e Begriffsgeschichte.
O que se pretende compreender no presente texto é como essas mudanças na língua alemã durante o Nazismo afetaram os pensamentos das crianças. Para tal, partimos do pressuposto de que Primo Levi (2004) estava, ao menos, parcialmente correto ao dizer que Goethe não entenderia o alemão dos Campos de Concentração (KZ), assim como que a ideia de LTI (Lingua Tertii Imperii), de Vitor Klemperer, onde ele - a partir de suas anotações como filólogo alemão-judeu/judeu-alemão[1] - define a diferença entre a linguagem nazista e a linguagem de Weimar, estejam certas. Para tal observaremos as ideias de Vygotsky sobre linguagem e sobre Zona de Desenvolvimento Proximal.
A pessoa não nasce pronta. Ela se faz. Assim o meio, apesar de não ser o único fator, ajuda a construir suas observações de mundo. Ora, o meio a que as crianças das décadas de 1930 e primeira metade da década de 1940 cresceram é marcada por um sistema de pensamento chamado de nazismo. Essas pessoas conviviam com pais – exceto raras exceções de vanguardas da resistência – que eram adeptos à ideologia nazista ou ao menos não se indispunha da mesma, e frequentavam escolas onde essas ideologias eram amplamente divulgadas e a associação aos Bund Deutscher Mädel (BDM) e Hitlerjugend (HJ)[2] eram imediatas e indispensáveis para os estudantes.
As palavras tiveram seu significado alterado. Por exemplo, a palavra Heroísmo. De acordo com Klemperer (2009), o significado nazista de heroísmo é dar a vida pela ideologia nazista e por Hitler. Ou seja, um alemão que morre em batalha é um herói, uma batalha é heroica mesmo que não seja vencida. Mas seu significado até a República de Weimar advém do latim romano, e é usada para a pessoa ou ação que faz o bem sem que isso seja divulgado, seu anonimato e sua não recompensa (ou até prejuízo) são consequências do bem por si só. A ação tem um fim em si mesma. No pós Segunda Guerra, heroísmo virou uma palavra tabu na Alemanha Oriental e retomou o significado romano na Alemanha Ocidental.
Mas não só essa. Os prefixos de diversas palavras alemãs foram alteradas ou palavras foram criadas com o intuito de depreciar aqueles que não são aceitos pelos ideais nazistas. Logo, palavras de depreciação ao judeu foram incluídas nas conversas cotidianas, nas transmissões radiofônicas e quebraram a possibilidade de resposta dos judeus. Isso é, o pensamento e a linguagem, como bem disse Vygostky (2008), não são processos interdependentes e simultâneos. Assim, pela comunicação o judeu consegue compreender o significado preconceituoso imbuído na palavra, consegue gerar um pensamento de resposta e defesa na negação daquela palavra, mas não consegue expressar o pensamento porque faltam palavras visto que as que estão disponíveis representam contínuos preconceitos.
As crianças que nasceram e se formaram nesse sistema, como todas as crianças, não nasceram com pensamento e linguagem prontas. Mas seu pensamento pré-linguístico já vem marcado por um arcabouço anti-semita, apresentado pela linguagem gestual (Heil Hitler) e pela linguagem simbólica (suásticas) – presentes até mesmos nos brinquedos infantis. E a sua linguagem se desenvolve em um ambiente propício para a fomentação do ideal nacional-socialista. Esses dois juntos vão formar a Zona de Desenvolvimento Proximal da criança.
Da mesma maneira que as interações entre a criança e as pessoas no seu ambiente desenvolvem a fala interior e o pensamento reflexivo, essas interações propiciam o desenvolvimento do comportamento voluntário da criança. (Vygotsky, 2008, pp. 102-103)
Assim, ao ser confrontada com o ensino sistematizado, a criança terá seu Desenvolvimento Potencial, que é a formação de novos soldados de Hitler possivelmente alcançado. Seu Desenvolvimento Real será acrescido de seu arcabouço de formação (um background nazista simbólico), formando uma Zona de Desenvolvimento Proximal, onde haverá a intervenção do professor. Na Alemanha Nazista as aulas partiam de exemplos de guerra e negativos de judeus, em especial com exercícios e exaltações dos primeiros e caricaturas dos segundos.
Podemos ver como é difícil para as crianças separar o nome de um objeto de seus atributos, que se prendem ao nome quando este é transferido, do mesmo modo como as coisas que se possui acompanham o seu dono. (Vygotsky, 2008, p. 161)
Ora, assim sendo é de se esperar que a imagem que as crianças façam dos judeus fosse mesmo de um ser desprezível e indesejável, perpetrado por palavras de repulsa, que encontram ressonância em seu meio social onde seu pensamento é exposto em forma de fala. Até porque “o crescimento intelectual da criança depende de seu domínio dos meios sociais do pensamento, isto é, da linguagem” (Vygotsky, 2007, p. 63)
Desta forma, concluímos que o contexto histórico alterou a linguagem alemã, e que esta alterou as formas de pensamento, bem como as formas de pensamento alteraram a linguagem alemã. Há cruzamentos e distanciamentos simultâneos no processo, dificultando suas separações e definições. Mas de qualquer forma esse processo alterou a formação das Zonas de Desenvolvimentos Proximais das crianças alemãs das décadas de 1930-1940, facilitando seu desenvolvimento anti-semita e nazista a partir da interiorização a aceitação dos novos significados das palavras e das ações.
Referências
KLEMPERER, Vitor. LTI. Rio de Janeiro: Contraponto, 2009.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
VYGOTSKY, Lev. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
Tila de Almeida Mendonça
Graduanda em História pela Universidade Federal de Goiás
tila.mendonca@gmail.com
[1] Diferenciação definida por Peter Kenez e Murray Baumgarten. Alemão-judeu é um alemão descendente de judeus. Judeu-alemão é um judeu, que por um acaso do destino nasceu na Alemanha. Klemperer se considerava um alemão-judeu. O sistema nazista o considerava um judeu-alemão.
[2] Liga das Moças Alemãs e Juventude Hitlerista.
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