A NECESSIDADE DA LUTA SOCIAL NO ESPAÇO DA CRISE AMPLIADA COM A COVID-19 – Guilherme Matos de Oliveira

24/09/2020 13:51

Ninguém imaginava que a circulação de um vírus tomaria projeções tão enormes quanto a do Covid-19 no mundo, ao passo que sua epidemia, materializada nos entremeios de nossa sociedade, se circunscreve enquanto um grande processo histórico desta nossa geração e do século XXI. Cabe pontuar que sua rápida propagação foi favorecida geograficamente diante da amplitude das relações urbanas que se interconectam mundialmente. Entretanto, não podemos reduzir o caráter crítico da reprodução social do mundo hodierno somente ao vírus.

Nessa compreensão, vale ressaltar que não estamos poupando os riscos letais do novo coronavírus, pois ele não está poupando ninguém, pelo contrário: é pela preocupação com a vida de todos que, ao aliançarmos esforços no combate à circulação do Covid-19, devemos também combater a expansão de outros tantos ‘vírus’ que se multiplicam dia após dia, mesmo antes da pandemia.

Posto este esclarecimento, afirmamos que não é somente a capacidade destrutiva do vírus de ferir a humanidade de maneira tão cruel, mas é a incapacidade do sistema capitalista que se realiza no espaço das relações sociais, de enfrentar os riscos que muitas vezes são instaurados socialmente na apropriação brutal da natureza – esta que por sua vez responde às agressões sofridas por meio de fenômenos como o Covid-19 – e que são banalizados no ‘turbilhão da vida moderna’ como bem assevera Marshall Berman. Dessa maneira, a crise desde antes marcada na circulação do valor, se amplia com a propagação do novo coronavírus, e não se concentra unicamente na problemática sanitária dele.

Nesse sentido, duas inquietações se fazem plausíveis de serem postas: na concretude global do vírus, as contradições sociais acabaram? É claro que pelo contrário, elas se ampliaram. Todavia, se porventura o vírus não existisse, estas contradições que condicionam o espaço da crise sociometabólica, como nos ensina Istvan Mészáros, não continuariam a construir sua marcha destrutiva?

Pontuamos (e tensionamos) estas questões, que por sua vez levam-nos à reflexão de tantas outras, uma vez que na retórica de diversos segmentos sociais a crise vem se estabelecendo pelos efeitos nocivos que o novo coronavírus tem proporcionado, como se a situação crítica da epidemia fosse a única que tem impactado nossa existência; perpassando a tônica de intensos discursos e/ou debates – desde os pronunciamentos de representantes do Estado, quanto de algumas instituições, por entre conversas informais, dentre outras que em uma visão fragmentada e simplificada da realidade, como aponta a leitura lefebvreana, se esquecem por vezes que no movimento histórico, a crise estrutural vem se constituindo a muito tempo.

Sendo assim, trazemos algumas particularidades panorâmicas desse processo à reflexão para além das aparências configuradas pelo ‘novo normal’ a essência perversa do capital na totalidade da produção do espaço geográfico, que vem sendo tecido contraditoriamente – uma vez mais na atual epidemia, atingindo de maneira diametralmente desigual as classes sociais ao tempo em que a doença avança –  à medida que trazemos a dimensão da luta social enquanto uma necessidade no enfrentamento a essa realidade de perversidades.

Entre estas particularidades, podemos destacar aquelas que se processualizam em âmbito brasileiro, e que se confluenciam ao discurso e ações ideológicas extrema conservadoras, com requintes de crueldade, gestadas pelo representante maior do executivo no Estado brasileiro. Não podemos nos esquecer que no seu discurso de posse defendeu a democracia apontando que governaria para todos, mas como um extremista que é, atiça de forma pragmática essa mesma democracia na satisfação dos seus interesses e de seus correligionários, promovendo uma rotineira agenda de confusão/contorno da situação/confusão...

Ao se curvar aos ditames do imperialismo o atual presidente brasileiro, até mesmo na sua indiferença à situação caótica e mortal da pandemia, vem “prestando continência” aos interesses do capital mundializado e suas determinações na divisão social, sexual, territorial e internacional do trabalho. O apoio mútuo entre membros do legislativo que compõem a bancada 5b (do boi, da bíblia, da bala, da bula e dos bancos, que legaliza a expansão capitalista no país) e o presidente são uma grande evidência dessa questão, sendo que os rumos direcionados pela política interna vem garantindo a reprodução ampliada do capital, cabendo ressaltar que alguns dos interesses espoliativos do Estado e do mercado no país muito se assemelham à acumulação primitiva decifrada por Karl Marx no século XIX, e que aponta o total retrocesso nas ações do governo atual, visto que o arcaico tem se feito novo.

Essas determinações se estabelecem de múltiplas formas e se contextualiza à conteúdos sociais  complexos, a exemplo da disponibilização de trilhões de reais pelo governo federal brasileiro para ‘socorrer’ (acrescer) o capital financeiro materializado nos bancos e satisfazendo o ego do ministro chicago boy neoliberal; este, por sua vez, declara que os R$ 600,00 do auxílio emergencial viabilizado pelo mesmo governo federal serão disponibilizados à grande parte da população periférica do país até o mês de agosto de 2020, demonstrando mais uma vez em que lado e com quem o Estado brasileiro se encontra, mesmo diante do caos sanitário.

Podemos visualizar os efeitos da crise também no processo de desindustrialização/reprimarização da economia nacional na produção de commodities pelo agronegócio, este que define e negocia sua produção entre as determinações dos mercados futuros nas bolsas de valores espalhadas pelo mundo, à medida que reproduz suas fronteiras mesmo na situação pandêmica ao continuar destruindo a natureza física/social, como no desmatamento da Amazônia e sua biodiversidade, invadindo territórios indígenas, quilombolas, e de outras comunidades tradicionais ao extrair a renda da terra, expropriando de forma violenta seus sujeitos e aproveitando do momento epidêmico ‘para deixar a boiada passar’. Esse processo ainda se conflitua com as questões da segurança e soberania alimentar, ao passo que quem põe comida na mesa da população nacional são os pequenos agricultores com uma produção diversificada e saudável de alimentos. Todavia, segundo recorrentes projeções da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), aquilo que se previa vem acontecendo: a ampliação da fome nos espaços periféricos de reprodução social.

Sendo um dos piores ‘vírus’ produzidos no espaço da crise capitalista, a fome se faz presente no cotidiano das periferias urbanas, uma vez que diante da exploração do capital sobre o trabalho, muitos sujeitos sociais são obrigados a quebrarem a quarentena e o distanciamento social, estes que na busca pelo pão de cada dia são ‘sangrados’ na precarização do seu labor sistematizada pelo sistema de mercado para a obtenção do lucro, visto que contraditoriamente, os trabalhadores são submetidos a se exporem ao vírus mortal, sendo estes sujeitos terceirizados, temporários, informais, pluriativos, uberizados, dentre outros, até mesmo aqueles submetidos ao trabalho análogo à escravidão – realidade esta que remonta o período colonial brasileiro – sem nos esquecermos na ampliação do desemprego estrutural; contexto este que na sua totalidade é regulamentado no desmonte do Ministério do Trabalho e nas atuais reformas trabalhista e da previdência, sendo que os rebatimentos deste processo produz a violação de condições mínimas de sobrevivência da população pobre em nosso país, dentre elas a dificuldade no acesso à alimentação, bem como água potável, moradia, etc. Por isso que muitos migrantes, como os nordestinos, voltam desesperados e até de forma clandestina ao seu ‘chão’, mesmo colocando em risco sua vida e a dos seus familiares na possibilidade de contraírem o novo coronavírus, pois sabem que mesmo com o pouco, no interior a partilha de teto e comida acontece comunalmente entre sua família, amigos e conhecidos em seus territórios de origem.

Evidências das contradições estabelecidas no espaço social se fazem presentes também no universo educacional, uma vez que muitas aulas passam pelo processo virtual do ensino remoto. Cabe destacar que seu formato não é um problema em si mesmo, mas a conjuntura que se estabelece ao seu redor, haja visto que recursos como internet, celular, computador, ainda não são acessíveis para uma grande parcela de estudantes pobres em nosso país. Preocupamos também com as metodologias destas aulas, pois contamos com uma significativa diversidade social nos espaços escolares de nosso país, e que deve ser atendida nas suas singularidades, a exemplo dos alunos com necessidades especiais. Nossas aflições se situam ainda nos questionamentos se este formato temporário de ensino possa se transformar em permanente na realidade concreta de escolas e universidades, visto que mediante a crise estrutural, tudo pode virar mercadoria, reforçando consequentemente as desigualdades de classe, afetando o processo de ensino-aprendizagem e definindo quem pode ter acesso à educação, ao tempo em que prezamos por ela de forma gratuita, de qualidade e de forma presencial quando esta fase pandêmica for superada.

Outras nuances sociais se delineiam no momento atual, dentre elas o reforço ao patriarcado por setores conservadores da sociedade. Diante desta perversidade que, muitas vezes e historicamente/hierarquicamente, submete a mulher como propriedade controlada pelo homem, são ocasionadas situações que beiram até mesmo a casos de violência doméstica, que vem se intensificando na pandemia, posto que não é admissível que suas práticas sejam reproduzidas; como também a criminalização dos movimentos sociais, o preconceito contra moradores e trabalhadores informais/ou não de rua, contra LGBTQIA+, contra aqueles que diante da condição periférica e no desespero para se ‘incluírem’ socialmente cometem pequenos furtos e são sentenciados ao isolamento da prisão policial, no racismo contra pretos, entre tantos outros sujeitos que são marginalizados pela hierarquização social do modo capitalista de produção no espaço geográfico, promovida muitas vezes por uma parcela de entes da classe burguesa/pseudo-burguesa que ‘maquiam’ suas práticas de maldade ao se assentarem no discurso arrogante de que são pessoas de ‘bem, da moral e dos bons costumes’, e por muitas vezes justificando suas ações perversas nestes preceitos.

Para aqueles que se iludem com um suposto poder, que destilam ódio, negam a ciência pelo aceite ao obscurantismo – entre eles as fake news (da terra plana, da gripezinha, etc.), apoiadas por algumas mídias conspiratórias que deturpam a realidade e enganam muitos, principalmente aqueles que aceitam a aparência e/ou sua personificação em um ser ou objeto ‘supremo’ numa visão ufanista – e até mesmo os que corrompem sua humanidade na insensibilidade pela dor alheia, vale frisar que o mundo dá voltas! Em que situação, de que lado estaremos? Daqueles que promovem festas espetacularizadas e com aglomeração – sendo que aqui não estamos contra a ocupação do ócio pelo lazer, mas que este seja realizado respeitando o espaço de outra pessoa – ou dos que respeitam o distanciamento de suas casas, e com/como os médicos e pacientes lutam pela vida e por viver, sendo ambos sujeitos que no espaço da casa ou da superlotação dos hospitais, enfrentam as adversidades mesmo sendo ‘asfixiados’ não somente pelo vírus, mas também pelas pressões materiais, físicas e psicológicas, dentre elas as incertezas futuras de um mundo em crise.

Sinalizamos que ao estarmos na condição humana de passageiros da ‘nave terra’, precisamos uns dos outros enquanto sujeitos, e que ao final de nossa travessia viramos somente pó, à medida que a história seguirá seu rumo. O que não podemos aceitar é a reprodução contraditória e crítica do sistema de mercado que impõe seus limites e consequentemente provoca a destruição da vida em todas as suas dimensões, uma vez mais em tempos de pandemia. Assim, outras indagações se fazem latentes – e aqui não querendo conspirar – pois partimos da realidade concreta do sucateamento das políticas sanitárias do sistema de saúde pelo neoliberalismo: Quem nos garante que serão disponibilizados, para todos, a vacina e/ou medicamentos que eliminem o Covid-19? Os produtos farmacêuticos que destruirão o novo coronavírus serão somente adquiridos por aqueles que dispõem de recursos para comprá-los, reiterando um egoísmo societal de cunho classista provocado pelo sistema de mercado?

À luz da reflexão sobre os fatos que a luta social se faz mais do que nunca uma necessidade vital ao mundo contra o sistema capitalista, a exemplos dos manifestantes que gritaram pela perda de George Floyd, estadunidense da cidade de Minneapolis, preto e desempregado que na circulação do Covid-19 foi assassinado sendo asfixiado não pelo vírus, mas por um policial branco que numa ação fascista o matou; realidade esta brutal como a morte dos meninos brasileiros pretos João Pedro e Miguel, e como até antes da pandemia da Vereadora Marielle e do seu motorista Anderson, da travesti Dandara, dentre tantos outros mártires, levando os novos “antifas” espalhados no mundo todo a se levantarem diante da impunidade e a clamarem por justiça, ao passo que mesmo sob o risco de contraírem o novo coronavírus mostraram que não se curvam as determinações desiguais do mundo atual, como as de cunho fascista que estão vinculadas ao sistema capitalista. Estas mobilizações sociais, dentre outras tantas, como do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), da Central Única das Favelas (CUFA) na arrecadação de alimentos e produtos de higiene para sujeitos vulneráveis do campo e da cidade, reacendem em nós a esperança de que é possível viver ‘dias melhores’, como na sinfonia da música de mesmo título.

Ancorados em uma perspectiva revolucionária, destacamos que as lutas não podem se vincular somente a causas únicas – e por hipótese nenhuma vinculadas aqueles que fazem filantropia e tiram proveito dela – sendo que a solidariedade emergencial ou a emancipação de um grupo social não pode substituir o direito integral de todos possuírem as condições objetivas para se reproduzirem socialmente enquanto viverem.

Enfim, é principalmente num posicionamento político e no enfrentamento pela destruição do enraizado sistema capitalista que percorre as mais diferentes situações históricas, sociais, e provocador de inúmeros problemas na humanidade, que a luta precisa acontecer enquanto práxis, mesmo neste momento difícil da pandemia por meio da renitência no distanciamento social. Precisamos viver emancipados, e não sucumbidos para atender os interesses do capital que busca, no seu caráter contraditório, contornar a crise de sua reprodução criando novas crises e desferindo golpes contra a vida pelo lucro. Esperamos assim que o mal da individualidade e da concentração de riquezas, forjados pelo sistema capitalista sejam logo ‘remediados’ como a chaga crítica e global do Covid-19 – esta que será combatida pelo conhecimento científico. Para tanto, nossa luta em sociedade deve se estabelecer pelo triunfo contínuo da vida no planeta terra, posto que ao contrário o espaço da crise estrutural continuará se realizando e atentando contra nós, com ou sem pandemia.

Avante camaradas, à luta!

 

Guilherme Matos de Oliveira

Mestrando em Geografia (UESB)

E-mail: ggui995@gmail.com

 

Fonte da imagem: https://www.redebrasilatual.com.br/ (acesso em 14/07/2020).

 

Ficha bibliográfica:

OLIVEIRA, Guilherme Matos de. A necessidade da luta social no espaço da crise ampliada com a Covid-19. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 10, nº. 12, 24 de setembro de 2020. [ISSN 22380-5525]