A ORGANIZAÇÃO SOCIAL DO TRABALHO NO ESTADO CAPITALISTA - Ivone Garcia Barbosa & Telma Aparecida Teles Martins Silveira

15/06/2012 12:00

 

A década de 1990, no Brasil, foi marcada por um conjunto de transformações econômicas e sociais, impostas pelo reordenamento das relações de produção, que acarretaram e exigiram a reestruturação do Estado, enquanto um dos alicerces que estruturam o sistema capitalista.

Uma análise sistemática desse período histórico permite-nos perceber a essência do fenômeno subjacente à sua aparência.  A articulação entre as políticas públicas e o sistema de produção capitalista acaba por dissimular as relações sociais. De fato, pelo que pudemos apreender da concretude dessas relações, essa aparente desvinculação é induzida.

No plano econômico e social, são implementadas reformas significativas caracterizadas por políticas de diferenciação, de diversificação institucional e, principalmente, de privatização da esfera pública. No conjunto, tais propostas visam à redução da obrigação do Estado nas ações políticas e sociais nos campos da saúde, habitação, educação e previdência social, configurando o chamado Estado Mínimo. Essa reestruturação muda drasticamente a relação capital-trabalho, criando um desemprego estrutural, favorecendo o fortalecimento de grandes corporações e opostamente, elevando, nessa lógica, o trabalho precarizado, terceirizado (AZEVEDO, 1997); (BIANCHETTI, 2001).

Esse argumento ideológico ganha força na sociedade brasileira com a bandeira da retomada do desenvolvimento econômico, sob o discurso de modernização e racionalização do Estado com o objetivo de superar as mazelas do mundo contemporâneo – desemprego, hiperinflação, redução do crescimento econômico – tendo como foco o desmonte das políticas públicas.

Considerando toda essa dinâmica social e suas transformações, este artigo discute as relações existentes entre o modelo neoliberal e o papel do Estado.

As relações do homem com a natureza se constituem pela busca da preservação das funções vitais de sobrevivência e reprodução da espécie, em níveis individual e societal. A teoria marxista mostra que os homens se constituem sujeitos pelas relações que estabelecem com o meio, humanizando-se a partir daí, e buscando, por meio da técnica, transformar a si mesmo e ao mundo num movimento dialético. Nesse sentido, Marx e Engels (2002) mostram que:

[...] eles próprios [os homens] começam a se distinguir dos animais logo que começam a produzir seus meios de existência, e esse passo à frente é a própria conseqüência de sua organização corporal. Ao produzir seus meios de existência, os homens produzem indiretamente sua própria vida material (MARX; ENGELS, 2002, p. 10-11) (grifos dos autores).

O que os homens produzem depende da realidade material, não se reduzindo à simples busca da sobrevivência da espécie e sim a uma perspectiva mais complexa, pois a maneira de manifestar a sua vida representa exatamente o que eles são, coincidindo diretamente com sua produção: “[...] o que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais da sua produção” (MARX; ENGELS, 2002, p. 12).

Entretanto, no atual sistema produtivo capitalista, perde-se a condição de atividade vital do trabalho e assume-se a característica de trabalho alienado, fragmentado, cuja ocorrência é subjacente a um processo histórico construído pelas relações sociais de produção, que assume uma forma específica na propriedade privada. Acreditamos, então, que é na expropriação do outro que o homem não mais se reconhece no trabalho que desenvolve.

Manacorda (1991) pontua que o crescimento do capitalismo acarretou um desenvolvimento econômico contraditório até a formação da grande indústria que subsumiu o trabalho humano como manifestação de si mesmo ao capital retirando da divisão do trabalho a última aparência do seu caráter pessoal.

O trabalho modifica-se no capitalismo gerando uma relação contraditória entre o trabalhador e sua atividade “[...] que não é, de modo algum, natural, mas que contém, já, em si uma específica determinação econômica” (MANACORDA, 1991, p. 51).

A subordinação estrutural do trabalho ao capital não é um processo mecânico tampouco harmônico, é sim um processo conflituoso, historicamente constituído nas relações sociais, tendo como base a divisão hierárquica do trabalho. Essa hierarquia, por sua vez, acaba afetando a percepção que o próprio trabalhador tem de si e do processo (GRAMSCI, 1989).

O capitalismo na sua organização estrutural constrói a ideia da igualdade de direitos, liberdade e harmonia na relação da classe que vive do trabalho com a classe que detêm os meios e os instrumentos de produção da realidade material. Ora, como isso se dá, se as relações de força e de poder entre capital e trabalho são estruturalmente desiguais, contraditórias e conflitantes, à medida que se origina da dominação do capital e exploração do trabalhador para a retirada da mais-valia que é onde se localiza o lucro do dono do capital. A hierarquização é, pois, um dos fundamentos desse processo.

A especialização do trabalhador é crucial no modo de produção capitalista que se acirra cada vez mais no modelo neoliberal. Tal modelo tem como ideal a individualidade, elemento primordial da constituição de uma sociedade mais “democrática”, que se caracteriza por sujeitos desiguais.

A desigualdade entre indivíduos, segundo esse ideário, permite o equilíbrio e a divisão de funções para o desenvolvimento das características específicas, o que possibilita o “desabrochar” dos dotes, por parte de cada um. O individualismo, dessa ótica, tem como pressuposto de que cada homem deve ter direito à sua propriedade e a seus pertences, mas, para isso, é preciso lutar e investir no “próprio capital” para atingir o fim almejado. Assim, a defesa da propriedade privada em detrimento do público se acentua na medida em que esse indivíduo é automaticamente – segundo essa ideologia – responsável pelo seu sucesso ou por seu fracasso social. A igualdade se encontra, portanto, nas oportunidades, desde que suas habilidades pessoais sejam exploradas e não nas relações sociais.

Na busca por constante acumulação de capital, o capitalista sacrifica a classe trabalhadora, porém, arremete à estagnação do próprio modo de produção, à medida que, conforme Frigotto (1999) há uma superprodução sem consumo. Desse modo, a produção capitalista apresenta crises cíclicas, o que exige a reestruturação produtiva e dos processos que possibilitaram o aparecimento dessas crises, a fim de se manter a manutenção do capital pela classe que detém os meios de produção.

Assim, observamos que “[...] a crise é um elemento constituinte, estrutural do movimento cíclico da acumulação capitalista, assumindo formas específicas que variam de intensidade no tempo e no espaço” (FRIGOTTO, 1999, p. 62).  Essa realidade se diferencia e muito da ideologia apregoada pelos neoliberais que centram na premissa de que a crise é devido a alta interferência do Estado na economia, nas despesas sociais e na garantia dos direitos do trabalhador.

Cabe ressaltarmos que esse processo e suas relações não ocorrem em todos os lugares do mesmo modo, pois “[...] dependem do estágio de desenvolvimento em que cada uma delas se encontra no que concerne às forças produtivas, à divisão do trabalho e às relações internas”. (MARX; ENGELS, 2002, p. 11). Na concepção dos autores, é necessário compreendermos o desenvolvimento do modelo de produção capitalista nos lugares em que ele parece mais avançado para, também, entendermos como ele se articula nos países chamados em desenvolvimento, contribuindo com a manutenção da desigualdade e, ao mesmo tempo, com a acumulação/concentração de renda descomunal.

O movimento de ressignificação do capital apresenta uma nova forma de reestruturação da sua produção, diferindo do modelo taylorista e fordista que se consolidaram ao longo do século XX, tendo como elementos constitutivos a produção em massa de mercadorias pela linha de montagem com que se concretizava pela produção homogeneizada e pela estrutura verticalizada (FRIGOTTO, 1999); (ANTUNES, 2000).

Como forma de aperfeiçoamento dos outros dois modelos produtivos, o modelo toyotista de produção, se dá na fábrica visando ao controle dos tempos e movimentos (taylorismo) a fim de se diminuir o desperdício e aumentar-se o ritmo de trabalho que se efetiva no trabalho fragmentado e parcelado da produção em série, cujo movimento repetitivo de atividades é cada vez mais rápido (fordismo), resultando diretamente num trabalho coletivo, e convertendo, totalmente, o trabalhador ao processo de produção capitalista.

A linha de produção se consolidava num processo rígido de trabalho articulando-se entre si. Esse processo de produção em série unia os trabalhadores num mesmo ritmo e tempo necessários para a execução das tarefas. Essa forma de produção se caracteriza também pela divisão entre elaboração e execução, pois ao trabalhador bastaria executar as ações impostas pela máquina, enquanto para o trabalhador intelectual caberia pensar o como fazer. Esse tipo de produção caracteriza-se:

[...] pela mescla da produção em série fordista com o cronômetro taylorista [...] suprimindo a dimensão intelectual do trabalho operário, que era transferida para as esferas da gerência científica. A atividade de trabalho reduzia-se a uma ação mecânica e repetitiva (ANTUNES, 2001, p. 37).

Hobsbawm (1995) esclarece que a partir da década de 1970 observou-se a mudança nos modelos produtivos tayloristas e fordistas no modo de produção capitalista, cujo objetivo era uma rearticulação do capital a fim de se enfrentar as exigências da economia e do consumo. O autor comenta esse processo que denominou fim da Era de Ouro:

O novo método, iniciado pelos japoneses, e tornado possível pelas tecnologias da década de 1970, iria ter estoques muito menores, produzir o suficiente para abastecer os vendedores just in time (na hora), e de qualquer modo com uma capacidade muito maior de variar a produção de uma hora para a outra, a fim de enfrentar as exigências de mudança (HOBSBAWM, 1995, p. 394).

Percebemos, no fim da Era de Ouro do capitalismo, um movimento tecnológico acelerado, mas, ao mesmo tempo, ocorre a destruição de postos de trabalho que nunca mais seriam reconstruídos, não é simplesmente cíclica, mas é estrutural, pois “[...] os empregos perdidos nos maus tempos não retornariam quando os tempos melhoravam: não voltariam jamais” (HOBSBAWM, 1995, p. 403). Essa destruição de campos de trabalho ocorreu por causa de vários fatores, mas principalmente em face da nova divisão internacional do trabalho que transferiu indústrias de países altamente desenvolvidos para outros países.

Na década de 1990, com o desenvolvimento de uma alta tecnologia, o capital rompe barreiras, possibilitando negociações sem o intermédio do Estado, definindo-se como a globalização da economia que tem como cenário as seguintes características:

[...] o crescimento das atividades internacionais das firmas e dos fluxos comerciais; ampla mudança da base tecnológica [...] reordenamento dos mercados [...]; intensificação da circulação financeira, caracterizada pela expansão na mobilidade e na intermediação do capital internacional; predominância das trocas ditas intra-setoriais; reorganização dos grupos industriais em redes de firmas (CARCANHOLO; CARCANHOLO; MALAGUTI, 2002, p. 16).

Nessa perspectiva, há uma intensificação nas relações entre os diversos países no que tange ao setor produtivo e aos fluxos comerciais e financeiros. O novo modelo de reestruturação produtiva e ideário político se apresentam como a única forma de possibilitar de fato um êxito ao capital. A globalização assume a partir daí característica de elemento natural e irreversível.

Ianni (1998) pontua que o ideário ocidental capitalista se torna uma marca forte também nas culturas de todas as nações da Europa, América Latina, África, Ásia, Oceania, pois prega que tudo que é social se moderniza, ou irá se modernizar no molde ocidental, com o objetivo de “[...] secularizar, individualizar, urbanizar, industrializar, mercantilizar, racionalizar” (IANNI, 1998, p. 77). Essa modernização se espalha por todo o globo, generalizando condutas, padrões sociais e comerciais, coexistindo num mesmo espaço e tempo com outras formas de “[...] organização da vida e trabalho... de forma mais ou menos tensa ou pacificamente, mas em geral predominando” (IANNI, 1998, p. 77).

O autor mostra, ainda, que esse processo está ligado diretamente à ideia do capitalismo como única forma civilizatória que possibilita o desenvolvimento, apresentando-se como um elemento superior e inexorável. Esse movimento, como aponta o autor, envolve a internacionalização do capital que rompe “[...] fronteiras geográficas, regimes políticos, culturas e civilizações”. Além disso, o poder dado ao mercado implica numa reestruturação do Estado, numa “[...] internacionalização das diretrizes relativas à desestatização, desregulamentação, privatização, abertura de fronteiras” (IANNI, 1998, p. 48-49).

Nessa ótica, o Estado deve ser mínimo a fim de não intervir na lógica do mercado, o qual é considerado auto-regulador, atribuindo o sucesso do progresso e da modernização à economia. Isso caracteriza a postura político-ideológica neoliberal, que resulta de profundas transformações econômicas, políticas e sociais que têm como princípio a liberação do Estado em relação à ordenação do mercado e de compromissos sociais. Essa concepção, apesar de se basear no liberalismo clássico, apresenta algumas diferenças no que diz respeito à liberdade, pois, nesse modelo, a liberdade é regida pela economia das grandes organizações, sem o conteúdo político democrático proposto pelo liberalismo clássico (FRIGOTTO, 1999); (BIANCHETTI, 2001). Retoma-se, então, as bases do liberalismo reforçando a ideia de mercado livre.

As ações do Estado no que se refere às políticas sociais no modo de produção capitalista têm gerado críticas. Críticas essas gestadas nas próprias crises do modo de produção capitalista. Ao mesmo tempo em que o Estado é confrontado, ele busca formas de sobrevivência a essas crises e a renovação das suas políticas sociais.

Essa relação do Estado com as classes sociais se dá da seguinte forma: de um lado, tem-se uma classe que luta por direitos sociais dos quais foram privadas pela forma de opressão que se vivencia no modo de produção capitalista. De outro, há a classe hegemônica do grupo monopolista a qual objetiva a manutenção da organização econômica e social que se viabiliza na divisão de classes. Os interesses opostos se confrontam na realidade social tendo, então, o Estado que buscar o consenso, mas sempre mantendo o interesse da classe dominante. Como afirma Poulantzas (2000), desde a ascensão do modo de produção capitalista ocorre o seguinte:

O Estado baliza desde então o campo de lutas, aí incluídas as relações de produção; organiza o mercado e as relações de propriedade; institui o domínio político e instaura a classe politicamente dominante; marca e codifica todas as formas de divisão social do trabalho, todo o real no quadro referencial de uma sociedade dividida em classes (POULANTZAS, 2000, p. 37).

Convém destacamos que a reestruturação produtiva mantém a acumulação do capital convertendo o neoliberalismo numa ideologia forte que, de acordo com Fiori (2002, p. 75), mantém-se como pensamento único indo além do conteúdo econômico e apresentando-se como “um furor ideológico de moderno dogmatismo”. Transforma-se, então, num “consenso mundial”.

 

Referências bibliográficas

ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaios sobre afirmação e a negação do trabalho. 4 ed. São Paulo: Boitempo editorial, 2001.

AZEVEDO, Janete M. Lins. A educação como política pública. Campinas-SP: Autores Associados, 1997.

BIANCHETTI, Roberto. G. Modelo neoliberal e políticas educacionais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2001. (Coleção Questões da Nossa Época; v. 56).

CARCANHOLO, Reinaldo; CARCANHORLO, Marcelo; MALAGUTI, Manoel. L. Neoliberalismo: a tragédia do nosso tempo. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2002. (Coleção questões da nossa época).

FIORI, José Luís. 60 lições dos 90: uma década de neoliberalismo. 2. ed. Rio de Janeiro: Record, 2002

FRIGOTTO, Gaudêncio. Educação e a crise do capitalismo real. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1999.

GRAMSCI, Antônio. A concepção dialética da história. 8. ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1989.

HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. (Tradução: Marcos Santarrita)

IANNI, Otávio. Teorias da globalização. 5 ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1998.

MANACORDA, Mario Alighiero. Marx e a pedagogia moderna. São Paulo-SP: Cortez/Autores associados, 1991MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

POULANTZAS, Nicos. Estado, poder e socialismo. 4 ed. São Paulo: Graal editora, 2000.

 

 

Drª. Ivone Garcia Barbosa

Professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás

Coordenadora do NEPIEC (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e sua Educação em Diferentes Contextos)

ivonegbarbosa@hotmail.com

 

Ms. Telma Aparecida Teles Martins Silveira

Professora do Instituto Federal de Goiás/ Campus Anápolis

Membro do NEPIEC (Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Infância e sua Educação em Diferentes Contextos)

telmateles@hotmail.com

 

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Ficha bibliográfica:

BARBOSA, Ivone Garcia; SILVEIRA, Telma Aparecida Teles Martins. A organização social do trabalho no estado capistalista. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol. 2, nº.2, 15 de junho de 2012. [ISSN 2238-5525].