A PANDEMIA DO CAOS TAMBÉM HUMANIZA OU EM MEU PEITO CATOLAICO TUDO É DESCRENÇA E FÉ - Cláudio Pires Viana

27/03/2020 17:35

A primeira página da 'Gazeta de Notícias' mostra o caos no Rio de Janeiro dominado pela gripe espanhola (imagem: Biblioteca Nacional)

Imagem: Biblioteca Nacional. 

 

Sempre me provoquei a pensar sobre como teria sido viver no Brasil no início do século XX. Imaginava a vida nas pacatas cidades, no sertão do Caicó, Olinda, Ouro Preto, Vila Boa. E nos grandes centros, Rio, São Paulo, Recife, Salvador, BH. As bucólicas paisagens, os subúrbios, os bares, botecos e o vai-e-vem de pessoas em insuspeitas calmarias poéticas das modernas ruas e avenidas daquelas urbes de um bem porvir.

Agora, em tempos de pandemia, fico imaginando como foi viver em 1918 o surto global da Gripe Espanhola. Qual terror teria sido vivenciar naquela época a ameaça da febre do infortúnio. Trinta e cinco mil pessoas mortas, entre as quais o Presidente da República Rodrigues Alves, que não chegou a ser empossado no cargo por ter sido contaminado pela peste que assombrava a nação. Penso na angústia daqueles citadinos de modernas e promissoras metrópoles que não tinham sequer acesso à informação adequada. Esse fenômeno histórico ainda hoje é cercado de ilações, mistérios e suposições sobre como teria sido a vida na cotidianidade daquelas cidades.

Por isso, então, quero aqui ajudar os historiadores do século XXII a explicar aos jovens do futuro sobre como foi a experiência de viver em uma capital brasileira – em pleno prelúdio da terceira década do século XXI – a crise pandêmica provocada pelo novo Coronavírus.

Então, escafandristas do futuro, foi assim:

Foram tempos terríveis! Não haveremos de esquecer! Não teremos saudade. A dúvida e a angústia cerceavam nossas consciências e o nosso desejo de nos fazer futuro. Sentimos medo, muito medo! Tivemos que nos afastar dos nossos velhos, pais e avós, testemunhas de ouvir falar de uma distante Gripe Espanhola que seus pais viveram no passado.  Era assim: infantes de um lado, anciãos de outro. Eles e nós com um tipo de sentimento em comum e incomum: a proteção pela saudade.

Mas, ah, o contraditório também se apresentou.

Voltávamos, metaforicamente, à idade dos lampiões a gás. Ficávamos em casa, amanhecíamos e entardecíamos, a família reunida no conforto do ócio, como se nos tivesse forçado à oportunidade de nos conhecer mais. Algo que a vida produtiva da sociedade pós-moderna já não nos permitia, com seus arroubos individualistas, produtivistas e consumistas. Agora tínhamos somente no supermercado da esquina, na farmácia do bairro, no fundo de quintal ou na varanda do apartamento os espaços mais longínquos resguardados à vida social. O contato com o mundo era virtual. Víamos por meio das redes sociais (era assim que denominávamos a esfera da comunicação em massa) toda a angústia de um futuro incerto. Como em 1918, sofríamos também com os boatos –  que chamávamos de fake news – toda a dor da incerteza. Aprendíamos mais uma vez a ser solidários na solidão, esquecíamos por ora aquelas ideias insistentes sobre a primazia do mercado, a visão economicista, a teologia do capital, e voltávamos a dar valor à necessidade de um Estado de bem-estar social, Estado-providência, Estado-social, e questionávamos sobre como ele poderia nos salvar de todo o mal que a doença representava. Em casa, reencontrávamos a magia de contar histórias aos nossos filhos e ouvi-los nas suas carências pueris. A internet, computador, jogos virtuais e TV já não satisfaziam mais. Todos já sentíamos falta dos parques, das ruas, de ver gente, segurar a mão do outro, abraçar e ser abraçados. Mas não podíamos fazer nada disso. Tínhamos que reaprender a ficar em casa, a ler a boa literatura, a assistir a um bom filme, a mãe fazendo comida caseira, o pai comandando o churrasco e as crianças brincando no quintal. A iminência da morte nos obrigou a ir ao encontro de nossa humanização perdida, de nossa esperança esquecida, de nossa utopia no chão. Havia vida em meio ao iminente mal.

 

No meu peito catolaico tudo é descrença e fé

Hoje, ouvindo Chico César, revisitei esses versos da bela canção “A prosa impúrpura do Caicó”. Nada mais atual. No meu peito católico e laico, descrença e fé!

Hoje, aqui, como em 1918 ou em Caicó de Chico César, “tudo é descrença e fé”. Há, porém, uma diferença. Dessa vez deu resultado negativo no exame do Presidente da República, embora toda sua comitiva de viagem tenha sido contaminada.  E nesse ponto, o velho Marx explica: a história se repete. A primeira vez como tragédia e a segunda como farsa.

 

Cláudio Pires Viana

Doutor em Educação pela Universidade Federal de Goiás

Professor da Universidade Estadual de Goiás e da Rede Municipal de Educação de Goiânia

vianaufg@yahoo.com.br