A TEORIA DO VALOR-TRABALHO E A CONSTITUIÇÃO DO VALOR: AS CLASSES SOCIAIS NA TEORIA DE MARX - Lucas Maia
Este texto objetiva debater como Marx desenvolveu a teoria do valor e, portanto, a teoria da mais-valia, articulando esta discussão com os apontamentos que ele fez sobre as classes sociais. Quais são as classes fundamentais do capitalismo? Qual o conjunto de classes que compõem a sociedade moderna, tal como Marx a encontrou em seu tempo? Qual a relação do conjunto de classes sociais com a mais-valia produzida?
A teoria do valor-trabalho é deveras uma das mais belas criações do pensamento humano com intuito de devassar a produção e reprodução da vida material das sociedades humanas ao longo da história. Marx dedica grande parte de sua vida a compreender, criticar e desenvolver até as últimas consequências os elementos constituidores desta teoria. Não farei aqui uma longa análise do processo de constituição e desenvolvimento da teoria do valor-trabalho, desde os mercantilistas, os fisiocratas, os economistas clássicos, passando pelos economistas vulgares e sincréticos, até chegar a Marx e a partir daí as contribuições de seus continuadores e detratores[1]. Intenciono exclusivamente determinar como Marx desenvolveu esta teoria e como podemos compreender o conjunto das classes sociais no capitalismo a partir da análise do valor.
Já nos “Manuscritos econômico-filosóficos”, Marx faz a seguinte afirmação:
É exatamente na atuação sobre o mundo objetivado que o homem se manifesta como verdadeiro ser genérico. Esta produção é a sua vida genérica ativa. Por meio dela, a natureza nasce como a sua obra e a sua realidade. Em consequência, o elemento do trabalho é a objetivação da vida genérica do homem: ao não se reproduzir somente intelectualmente, como na consciência, mas ativamente, ele se duplica de modo real e percebe a sua própria imagem num mundo por ele criado (Marx, 2004, p. 117) (grifos meus)
Ou seja, a capacidade de realizar trabalho é uma necessidade humana. Para que o homem se objetive no mundo, é necessário que ele o faça por meio de uma atividade produtiva e esta atividade produtiva tem um duplo papel: a) humanizar o homem; b) produzir os víveres necessários à sua existência. Em uma palavra, a ação de o ser humano produzir sua existência o humaniza na mesma medida, da mesma forma que humaniza o mundo no qual ele vive.
Como já é por demais discutido, os economistas que compunham a escola que ficou conhecida como fisiocrática defendiam que somente a atividade agrícola gerava riqueza, produzia valor. Assim, a produção do valor era na verdade uma dádiva da natureza, do solo. Os economistas clássicos, notadamente Adam Smith e David Ricardo, apresentaram tese contrária a esta. Como verdadeiros ideólogos da manufatura, os quais produziram belíssimas interpretações deste período da aurora do capitalismo, não podiam crer que a fonte da riqueza estava somente na produção agrícola. A partir da crítica da concepção fisiocrática, desenvolveram os princípios da teoria do valor-trabalho, segundo a qual a origem da riqueza encontra-se na atividade humana, na sua capacidade de realizar trabalho.
Devido aos vínculos destes autores com os interesses da então burguesia que se consolidava, não puderam levar às últimas consequências suas descobertas acerca desta matéria. É justamente criticando estes autores, os quais Marx nutria certo respeito, identificando-os como os últimos baluartes da produção teórica partindo do ponto de vista da burguesia, que Marx dá continuidade à teoria do valor-trabalho. Afirmava que estes autores não podiam chegar a determinadas conclusões, por que o ponto de partida deles era o ponto de vista burguês e por causa disto não podiam compreender determinados processos, notadamente o de espoliação violenta da força de trabalho. Devido a estes “limites intransponíveis da consciência burguesa” é que Marx parte de outra perspectiva: a do proletariado.
Ainda, considerando de um ponto de vista genérico o trabalho, agora em “O Capital”, Marx faz a seguinte afirmação:
O processo de trabalho, como o apresentamos em seus elementos simples e abstratos, é atividade orientada a um fim para produzir valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza, condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas sociais (Marx, 1983a, p. 153)
O processo de trabalho é, portanto, algo inerente à existência humana e algo que constitui sua existência. Não houve, não há e não haverá formas de sociedades humanas que prescindam do trabalho como atividade produtiva que satisfaça necessidades. Entretanto, a forma social da produção capitalista de realizar tal atividade, ao invés de objetivar o ser humano, pelo contrário, o aliena e o desumaniza. Este processo de desumanização que se dá através da realização de um trabalho alienado é comum a todos os modos de produção fundados no antagonismo de classes. E isto ocorre na sociedade moderna.
Deste modo, o trabalho, que juntamente com a terra é fonte de toda a riqueza, torna-se nas sociedades de classe um método segundo o qual se espolia até o limite os indivíduos vinculados diretamente à atividade produtiva, ou seja, as classes trabalhadoras. A teoria do valor-trabalho em Marx tem este sentido ontológico de constituição permanente do ser humano[2]. O homem, produzindo sua existência, se produz enquanto tal à medida que realiza um determinado trabalho.
No capitalismo, este “Processo de trabalho” é simultaneamente “Processo de valorização”. A valorização é o processo de constituição do valor. Para Marx, valor é o tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma determinada mercadoria. A teoria do valor-trabalho tem uma implicação ontológica e, portanto, como vimos, explica o processo reprodução material da vida dos homens independentemente da forma social que se revista esta atividade. É comum a todas as sociedades. Pelo contrário, o valor é uma forma social determinada. Onde há a produção de valores de uso (produtos que satisfaçam necessidades) com o objetivo de serem mercadejados no mercado, há a produção de valores de troca.
Na produção de valores de uso, não se esconde nenhum segredo. Um determinado produto tem uma certa utilidade e por isto é produzido. Pelo contrário, quando um dado produto é produzido com vistas a ser trocado no mercado, outros pressupostos entram em sua constituição. É a partir daí que Marx começa a derivar sua teoria do valor. Um produto X será trocado por um produto Y. Ambos são valores úteis diferentes, por exemplo, pão e sapato. Nada há de estranho em necessitar calçar e comer. Agora, trocar pão por sapato já é uma operação um pouco mais sutil. O que permite que pão seja trocado por sapato? O que há de comum entre estes dois produtos é que ambos são produto do trabalho humano. O trabalho do padeiro produz o pão e o do sapateiro o sapato. Assim, como trabalho concreto, há a produção de valores de uso (pão e sapato). Agora, como trabalho abstrato, genérico há somente a capacidade humana de realizar trabalho. Este trabalho tem que ser medido de uma determinada forma. Mede-se o trabalho pelo tempo gasto para se produzir um determinado produto. Este tempo gasto para se produzir os produtos é que permite igualar o pão e o sapato a um terceiro elemento, o tempo de trabalho. A partir de agora já podemos mercadejar os produtos reduzindo-os ao que ambos tem em comum, ou seja, o fato de serem produtos do trabalho humano e como tais podem ser medidos através do tempo de trabalho socialmente necessários para produzi-los.
Porém, no capitalismo, não basta somente produzir valor, para que o capital reproduza-se constantemente, é indispensável a produção de um mais-valor. A mais-valia é a forma capitalista de produção de mercadorias. É a forma social de que se reveste o trabalho humano. O trabalho do sapateiro e do padeiro são formas concretas sobre as quais se realiza o trabalho. São considerados, portanto, de seu ponto de vista útil, qualitativo. Como valor, o trabalho é considerado de um ponto de vista genérico, abstrato. Todas as diferenças de qualidade entre os vários trabalhos são eliminadas ficando somente o que todos tem em comum, o fato de poderem ser medidos através de uma determinada unidade de medida: tempo (horas, dias, semanas etc.).
Só que nas sociedades de classe, além de o produtor realizar um trabalho necessário à sua existência, ele realiza também um trabalho excedente. Este trabalho excedente, este mais-trabalho, no capitalismo, assume a forma de mais-valia. Se um determinado trabalhador necessita, para sobreviver, trabalhar 4 horas e efetivamente ele trabalha 8, há portanto, um quantum de 4 horas trabalhadas e não recebidas. A estas 4 horas excedentes Marx dá o nome de mais-valia.
No livro terceiro de O Capital, Marx desenvolve o conceito de “mais-valia global”. Esta seria o quantum de mais-valia produzida em um determinado país em um determinado período de tempo, digamos, por exemplo, um ano. Tal como definida anteriormente, o conceito de mais-valia explica satisfatoriamente a reprodução do capital considerado de modo isolado, de um capitalista particular. Para o conjunto da sociedade capitalista, que envolve além das classes fundamentais que o fundam: burguesia e proletariado, os proprietários fundiários, a burocracia, os intelectuais, os trabalhadores do comércio, do capital financeiro ou bancário e demais classes improdutivas etc. é necessário um conceito mais amplo que permita incorporar num todo explicativo o conjunto da sociedade. O conceito de mais-valia global visa satisfazer esta necessidade de explicação.
Assim, o processo de produção mesmo da mais-valia funda as classes fundamentais do capitalismo: burguesia e proletariado, sendo este o produtor da riqueza e aquela a apropriadora. Mas uma outra classe de importância quantitativa e política no século XIX eram os proprietários fundiários. Marx demonstra, criticando a economia vulgar, que esta classe, da mesma forma que a burguesia, vive de apropriar parte da mais-valia produzida pelo proletariado. Mas a forma como os latifundiários o fazem é através da renda fundiária. Assim, tanto os lucros da burguesia industrial e arrendatários capitalistas, como a renda fundiária são frações da mais-valia.
O mesmo ocorre com as frações da burguesia que são ligadas ao que Marx denomina de capital improdutivo: o capital comercial e financeiro ou bancário. Os lucros do capitalista comercial, da mesma forma que os juros da burguesia bancária são também partes da mais-valia cedidas pela burguesia industrial: em forma de lucros do capital comercial e em forma de juros do capital bancário.
O desenvolvimento do capitalismo cria um conjunto de classes improdutivas. Marx entende por classes improdutivas todas aquelas que não produzem mais-valia[3], mas sim que se apropriam da mais-valia produzida por outrem. Todas as classes dominantes são, deveras, classes improdutivas. Mas também, no seio mesmo da classe trabalhadora se desenvolvem determinadas classes que embora sejam submetidas e dominadas, não são, todavia, produtivas. Por exemplo, os trabalhadores do comércio, que embora sejam dominados pelos capitalistas comerciantes e gerem lucros para estes, este lucro, como vimos, não deriva do fato de os trabalhadores do comércio acrescentarem mais-valia aos produtos. O que ocorre, de fato, é que estes trabalhadores compõem parte do capital variável dos comerciantes. Este capital variável é parte da mais-valia produzida na esfera produtiva e transferida para a esfera da circulação em forma de lucros do capital comercial.
Isto ocorre também, com o que Marx denomina de “classe dos serviçais”. Esta classe, ao invés de se reduzir, amplia-se com o desenvolvimento das forças produtivas. Quanto mais desenvolvida é a capacidade de produção de uma determinada sociedade, mais é possível a ela colocar fora da esfera produtiva seguimentos da classe trabalhadora. Toda a riqueza produzida permite que um quantum considerável de indivíduos da classe trabalhadora se dedique a atividades improdutivas, ou seja, que não geram mais-valia.
Também, o desenvolvimento mesmo da capacidade produtiva do capital permite que o trabalho de gerência e supervisão passe das mãos dos capitalistas propriamente ditos para uma outra classe social, as quais Marx denomina managers ou gerentes. Trata-se daquele seguimento de “assalariados especiais” que compõem o conjunto de atividades produtivas da fábrica que são responsáveis por controlar, gerir, superintender a classe trabalhadora dentro do processo de trabalho. Esta classe está presente tanto na esfera do capital produtivo (industrial), quanto na do capital improdutivo (comercial e bancário). Os gerentes são parte do capital variável dos capitalistas necessários para garantir o processo de exploração. Esta classe se desenvolve a limites nunca vistos antes com o surgimento das sociedades por ações. Estas retiram definitivamente os proprietários jurídicos das ações, os capitalistas, da direção plena do processo de produção, deixando esta função para os managers, aqueles que gerem propriamente o processo produtivo.
Situação específica se dá com as classes oriundas de modos de produção não-capitalista, tal como o campesinato. O campesinato, como ressalta Viana (2009), é a classe social constituinte do modo de produção camponês. Este é subordinado ao modo capitalista de produção. Contudo, a riqueza produzida por esta classe não é derivada de parte da mais-valia produzida pelo proletariado. Embora esse mais-trabalho converta-se, com frequência, em renda fundiária, compondo, portanto, a mais-valia global, este excedente não é mais-valia no sentido estrito do termo. Entretanto, como avalia Marx (1983d), as riquezas, em forma de mercadoria ou dinheiro, vindas de modos de produção não-capitalista, se incorporam no ciclo global do capital.
Este texto não tem a intenção de esgotar o conjunto de classes sociais que compunham a sociedade capitalista no tempo de Marx, nem muito menos visa interpretar como esta composição se dá na contemporaneidade. Visou exclusivamente demonstrar como a partir da teoria do valor, tal como desenvolvida por Marx, podemos compreender o processo de aprofundamento da divisão social do trabalho e como este é acompanhado do aumento do número de classes sociais e principalmente, qual a origem dos rendimentos destas classes.
A teoria do valor-trabalho é o fundamento sobre o qual Marx ergue toda a estrutura interpretativa das classes sociais. Estas ocupam um determinado lugar na divisão social do trabalho, vivem da exploração da força de trabalho do proletariado, portanto, da mais-valia e se ampliam à media que se desenvolve a produção capitalista. Contrariamente ao que comumente se diz, em Marx não há uma visão dualista de classes sociais, na qual só teriam importância burguesia e proletariado. A análise marxista é muito mais complexa e como vimos está diretamente relacionada à teoria do valor-trabalho de um modo de geral e, particularmente, em seu revestimento social sob o capitalismo: o valor[4].
Referências bibliográficas
MATTICK. P. Marx y Keynes: los limtes de la economia mixta. Mexico DF: Era, 1975.
______. O marxismo e o capitalismo monopolista. In: Integração capitalista e ruptura operária. Porto: Regra do Jogo, 1977.
MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Matin Claret, 2004.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. V. 1. T. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983a.
______. O capital: crítica da economia política. V. 1. T. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
______. O capital: crítica da economia política. V. 3. T. 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983c.
______. O capital: crítica da economia política. V. 3. T. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1983b.
______. O capital: crítica da economia política. V. 2. São Paulo: Abril Cultural, 1983d.
______. Teorias da mais-valia. V. 1. São Paulo: Civilização Brasileira, 1980.
VIANA, N. Marx e o modo de produção camponês. In: ______. Temas de sociologia rural. Pará de Minas: VirtualBooks, 2009.
[1] Para tanto, pode-se consultar: Marx (1983a; 1983b; 1983c, 1980), bem como Mattick (1975), entre vários outros.
[2] Segundo Paul Mattick: “La teoria del valor-trabajo se refiere a la inevitable necessidad – común a todas las sociedades – de trabajar y distribuir el trabajo social en proprociones definidas. Pero, esta necessidad se manifesta en una ley del valor somente en el capitalismo, y sólo porque la economia de mercado no puede separar el processo de producción de valor del processo de producción mesmo” (Mattick, 1975, p. 42)
[3] Sobre isto, na verdade, há uma certa imprecisão nos textos de Marx. Em O Capital, bem como em outras obras, na maioria das vezes ele se refere a trabalho produtivo como sendo aquele que gera valor. Há contudo, referências a trabalho produtivo como sendo aquele que gera lucro. Nos limites deste trabalho, estamos usando o conceito como sendo aquele que gera mais-valia.
[4] Isto foi discutido também por Mattick (1977).
Lucas Maia
Geógrafo. Professor do Instituto Federal de Goiás/Campus Anápolis.
Doutorando em geografia pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Geografia do IESA/UFG
Membro da diretoria executiva da AGB – Seção Goiânia.
E-mail: maiaslucas@yahoo.com.br