A UNIVERSIDADE BRASILEIRA E O PARADOXO DA MODERNIDADE - Rosimeire Petruci

04/06/2018 20:13

 

Os discursos em defesa da nacionalidade e da unidade territorial nos anos de 1930 foram uma das discussões de maior vigor no campo político, econômico e social no Brasil. Na área educacional, as novas diretrizes impostas para alinhar o ensino primário e secundário às perspectivas do “nacionalismo patriótico” (Vlach, 1984; Rocha, 1996) encontraram respaldo nesses discursos ideológicos que, paulatinamente, influenciaram na instrução superior e na criação da universidade pública.

A educação configurou-se como um dos elementos indispensáveis para o “refinamento” da sociedade brasileira no início do século XX. Os discursos em prol da instrução educacional balizaram as iniciativas de promoção de um “espírito bacharelesco” (Barros, 1950) que estava intimamente ligado aos discursos acalorados sobre a modernidade e, consequentemente, a modernização do território. Foi justamente nesse contexto que a partir da primeira metade do século XX um grupo de intelectuais passou a fazer a crítica do país pautando-se, sobretudo, pelo viés da educação. Para esse grupo, a modernidade ensaiada e desejada pelas classes dirigentes não poderia jamais se configurar num país sem instrução educacional.

A fundação da Universidade de São Paulo – USP em 1934 simbolizou o marco para a consolidação dos propósitos das classes dirigentes em defesa do espírito da modernidade idealizada que, juntamente com a posição bacharelesca que lhe é inerente, fomentaria a construção da nacionalidade e a concretização da modernização e do progresso nacional. Não é por acaso que os discursos sobre o modelo de nação que se queria/ pretendia na época em questão se relaciona, de maneira geral, com os fundamentos ideológicos sobre a soberania territorial, uma vez que a educação normal e superior apresentava-se como uma das propostas mais eficazes para a reversão do atraso econômico que, na visão dos intelectuais da época, só seria possível por intermédio do refinamento cultural que estava diretamente relacionado com o ideal de modernidade vislumbrado e aceito como o veículo que levaria a consolidação do progresso (PÉCAUT, 1990).

Embora a ideia de modernidade com interesse na efetivação do progresso da Nação fosse o ponto alto dos discursos dos intelectuais e das classes dominantes brasileiras à época, é justamente aqui que começa a se delinear o paradoxo da modernidade que, de maneira geral, se contrapõe ao movimento de modernização que a universidade – sobretudo a pública – é, em grande parte, responsável por intermédio da prática científica que lhe é condizente.

A reprodução da lógica capitalista mistura-se com os discursos sobre a modernidade e se materializa em forma de ação no processo de modernização do território. Nesse sentido, a hegemonia do capital impregnada nos discursos em prol da modernização são processos catalizadores de alienação dentro das próprias universidades. Em outras palavras, a universidade brasileira está aquém da ideia de universalidade para todos, sem distinção. A propósito, o processo de modernização e institucionalização científica, como bem sinalizou Anselmo (2012), ocorreu (e ainda ocorre) à distância da sociedade em geral. Isso se deve em função dos interesses particulares das classes dominantes que imprimem força à medida que as necessidades eleitas por eles se tornam demasiadamente estratégicas para a efetivação de seus interesses nos lugares.

A ideia de modernidade irradia para a universidade as mesmas regras das empresas capitalistas determinando os rumos e as condições da estrutura econômica e da reprodução da divisão do trabalho. O paradoxo da modernidade expõe uma situação conflitante do real sentido que subjaz a ideia do moderno como uma mistura de contradições.

Marshall Berman (1982) apresenta esse paradoxo da modernidade ao discorrer sobre a ideia proposta por Marx em que “Tudo que é sólido desmancha no ar – a aventura da modernidade”, onde o moderno é ser revolucionário e ao mesmo tempo conservador. A universidade configura-se como um perpétuo estado de vir-a-ser, de transformação, de modernidade, logo de modernização.

É importante sinalizar que os conceitos de “Modernidade”, “Modernização” e “Modernismo” possuem sentidos e funções diferentes no âmbito das ciências humanas. O sentido e a acepção da palavra Modernidade encontram diferentes prospecções que versam de acordo com a orientação teórico-metodológica e a sua função/definição em diferentes áreas do conhecimento. O conceito de Modernização também reflete essas orientações, mas também, está atrelada a concepção do Real, do concreto, daquilo que se define como materialidade. O conceito de Modernismo está ligado a uma orientação estética-cultural que marcou um movimento intelectual e cultural influenciado por movimentos artísticos e literários que ganharam destaque entre o final do século XIX e o início do século XX. No Brasil, o movimento é lembrado pela referência à Semana de Arte Moderna de 1922.

A relação dual entre a modernidade e seus entraves econômicos e sociais é descortinada por Berman ao retratar metaforicamente a figura medieval de Fausto[1] mostrando a decadência do espírito humano de um intelectual não conformista influenciado pelas vicissitudes terrenas. O mito faustico de Goethe representa, amiúde, a condição do homem frente aos antagonismos impostos pelo advento da modernidade em que, segundo Berman, é representado por um novo sistema mundial. A instalação do modo de produção capitalista representa para Fausto o desejo pelo novo, vislumbrado pelo desenvolvimento científico e industrial. Em contrapartida, o desejo pelo desenvolvimento cercearia a liberdade e traria consigo as mazelas humanas próprias da condição imposta pelo capital.

A dialética metafórica entre o bem e o mal de Fausto exprime a pluralidade do sentido da modernidade. Ao invés de polos opostos, o ideal do autodesenvolvimento e o efetivo movimento social na direção do desenvolvimento econômico deveriam caminhar em uníssono e não fragmentados (BERMAN, 1982).

Assim como tudo que é sólido desmancha no ar revela um paradoxo em si como atribuído por Berman, Habermas (2000) demonstra em “O discurso filosófico da modernidade” o conflito entre o atual e o atemporal, ambos representantes antagônicos da modernidade. Sua construção filosófica sobre a modernidade se distância (em partes) das contribuições de Berman ao propor uma nova diferenciação sociológica entre modernidade e modernização promovendo uma aproximação entre modernidade e racionalidade. Para Habermas, a modernidade é um continuum projeto inacabado em permanente estado de transmudação.

A aproximação entre a universidade e a modernidade não se deve meramente ao acaso. A metáfora faustica atribuída por Berman para confrontar a dualidade imposta pela modernidade vai ao encontro da ambiguidade representada pelo sentido da universidade brasileira, uma vez que o discurso ideológico da modernidade apregoado por essas instituições revelam o contrário à medida que buscamos sua real efetividade na materialidade.

À guisa de conclusão, as discussões iniciadas brevemente neste ensaio não pretendem esgotar as provocações profundas que envolvem essa temática, principalmente aquelas que envolvem um caráter teórico-metodológico mais abrangente. Essas reflexões breves vêm no sentido de instigar o leitor a refletir sobre a construção de um ideal de modernidade propagado, em grande medida, pelas universidades e centros de pesquisa, no sentido de promover uma modernização dentro dos moldes econômicos gerido pelas classes dominantes e reproduzido por intermédio do discurso e da prática científica.  

A pergunta que se coloca em questão é: para que serve a universidade, a quem serve a universidade e o que queremos da universidade? São perguntas que não serão respondidas aqui, tamanha extensão e complexidade. Mas é inegável a constatação de que as classes dominantes brasileiras, representadas por blocos históricos em diferentes momentos, criam e recriam discursos por dentro das instituições de ensino para poderem se afirmar por meio delas, isto é, as universidades são, muitas vezes, pensadas e projetadas para reproduzirem o modelo de sociedade que as criou, e a escola também se enquadra nessa perspectiva.

Mas, não devemos esquecer que somos responsáveis pelos discursos que produzimos e, sobretudo, como os aplicamos na materialidade. Se a necessidade da educação no ensino normal e superior é justificada por uma necessidade do sistema de mercado com o intuito de “dotar as pessoas de determinados requisitos intelectuais indispensáveis ao exercício de uma função no campo da produção” (SCAFF, 2013, p. 109), devemos, contrariando essa afirmação, colocar em prática a reflexão de Porto Gonçalves (1984, p. 3): “Há de se tomar cuidado com os discursos e valores reproduzidos nos ambientes acadêmicos: serão estes valores que afirmam uma sociedade contraditória, opressiva e desigual ou estamos preocupados com um ensino (escolar e universitário) que abra espaço para a justiça social e para a democracia?”. Fica a aqui a reflexão.

 

Referências

ANSELMO, R.C.M.S. Os cursos de Geografia nas universidades públicas de Minas Gerais: uma história do pensamento geográfico no Brasil. Uberlândia: IG – UFU, 2012. Relatório de Pesquisa Fapemig Edital Universal.

BARROS, R. M. A ilustração brasileira e a idéia de universidade. São Paulo: Convívio/ Edusp, 1959.

BERMAN, M. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1982.

PÉCAUT, D. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. São Paulo: Ed. Ática, 1990.

HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Trad. Luiz Sérgio Repa e Rodnei Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

PORTO GONÇALVES, C. W. Reflexões sobre geografia e educação. Palestra realizada na Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas durante o treinamento para professores de geografia. São Paulo: 1984. Pp. 1-25.

ROCHA, G. O. R. Trajetória da disciplina Geografia no currículo escolar brasileiro (1837 – 1942). São Paulo: PUC, 1996. Dissertação de Mestrado.

SCAFF, E. A. S. Diretrizes do Banco Mundial para a inserção da lógica capitalista nas escolas brasileiras. In: PARO, V. H. (Org.). A teoria do valor em Marx e a educação. São Paulo: Cortez, 2ª ed., 2013. Pp. 99-121.

VLACH, V. R. F. A propósito do ensino de Geografia em questão o nacionalismo patriótico. São Paulo: USP, 1988. 206 p. (Dissertação de Mestrado).

Fonte da imagem: <https://universidade.pco.org.br/imperialismo-e-capitalismo-de-livre-concorrencia/>. Acesso em: 04 jun. 2018.



[1]Fausto: uma tragédia – é uma obra clássica do Romantismo alemão escrita por Goethe em 1808.

 

Rosimeire Petruci

Doutoranda em Geografia pela Universidade Federal de Uberlândia

meirepetrucci@hotmail.com

 

Ficha bibliográfica:

PETRUCI, Rosimeire. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 8, nº. 10, 4 de junho de 2018. [ISSN 22380-5525]