ÁGUAS DO CERRADO: TRISTES EVIDÊNCIAS - Fernando Bueno Oliveira e Romualdo Pessoa Campos Filho

06/08/2020 17:05

Para que houvesse a possibilidade de expansão da pecuária e de grandes plantações de grãos e algodão pelo Cerrado, principalmente a partir da década de 1970, e com maior intensidade ao longo do século atual, foram adotadas práticas no mínimo agressivas ao Cerrado tal como o desmatamento, que já se deu numa escala gigantesca e de consequências imprevisíveis para esse domínio, a utilização desenfreada dos recursos hídricos, seja pelo uso abusivo de pivôs para irrigação, que geram enorme desperdício de água ocasionando a transformação de rios perenes em intermitentes e, ainda, o lançamento de agrotóxicos, afetando, inclusive, o lençol freático e alterando a qualidade da água.

Ao se considerar a retirada da vegetação nativa do Cerrado deve-se relacionar o seu papel na regulação de grandes rios da América do Sul. Os aquíferos são reabastecidos pela água fluvial (chuva), mas dependem da vegetação para a sua recarga. Para se compreender a intrínseca relação entre vegetação nativa do Cerrado e a recarga dos aquíferos, Barbosa (2019) considera que é necessário recuar no tempo, pelo menos 45 milhões de anos. É nessa época que a vegetação do Cerrado adquire suas feições atuais, com um sistema radicular complexo o que possibilitou reter as águas das chuvas. De acordo com o mesmo autor, essas águas, primeiro, foram armazenadas nas rochas decompostas, que formam o lençol freático, depois, pela abundância, infiltraram pelas brechas e poros das rochas do subsolo e se acomodaram nos lençóis profundos. Dessa forma, quando os aquíferos retiveram água suficiente, essa começou a brotar, na forma de nascentes, principalmente nas testas de Serra e na forma de pequenas lagoas nas áreas aplainadas, formando as veredas. Com o tempo as águas começaram a descer em direções diversas encontrando calhas condutoras, ou seja, os rios.

A partir de 1970, a vegetação nativa do Cerrado, que ocupava os chapadões, campinas e tabuleiros, foi sendo substituída por plantas exóticas, tendo por consequência a não infiltração como em épocas anteriores à chegada do agronegócio e a não absorção pelo complexo radicular da vegetação nativa, a qual já foi retirada. Barbosa (2019) expõe que as plantas exóticas introduzidas têm raiz sub-superficial, e não chegam a reter 20% da água das chuvas. Segundo o autor, como se trata de culturas temporárias, grande parte do ano o solo fica desnudo, aumentando a perda da umidade do lençol freático. Além disso, a água da chuva também encontra resistência mecânica à penetração no solo nas áreas sob pastagem plantada e cultivo convencional fato resultante do pisoteio dos animais e trânsito de máquinas e implementos, respectivamente, conforme revela o estudo de Araújo et al. (2007).

Os estudos que versam sobre o processo de sedimentação no fundo de lagos indicam que nos grandes reservatórios o processo de infiltração é comprometido, mesmo com o grande volume d´água que represam. Esse fato é decorrente da formação de argila, que é uma rocha impermeável. Logo, a água desses grandes reservatórios não alimenta os aquíferos. Mesmo tendo muita quantidade de água superficial, ela não consegue penetrar no solo para alimentar os aquíferos. É o que ocorre, por exemplo, no fundo de lagos artificiais como o de Sobradinho (BA) e o de Serra da Mesa (GO). Esse é outro fator pelo qual os aquíferos não conseguem recuperar seu nível.

Dessa forma, pode-se constatar que a retirada da vegetação original resulta na diminuição do volume de água subterrânea, (lençóis freáticos e aquíferos) comprometendo a perenidade de nascentes e, consequentemente, o volume dos rios do Cerrado, os quais, por sua vez, são os principais abastecedores das grandes bacias hidrográficas brasileiras e da América do Sul. A rápida destruição das vegetações nativas está golpeando um dos pilares do sistema: a gigantesca rede de raízes que atua como uma esponja ajudando a recarregar os aquíferos que abastecem os rios que nascem no Cerrado. Outro aspecto que toma corpo diante da retirada da vegetação original é a compactação do solo, sendo tal processo decorrente de atividades que o desnuda, composto por fragmentos de rocha ou partículas detríticas e intensamente exposto às ações diretas da luz solar e da água da chuva. Forma-se, por conta disso, o silte, ou seja, um “cimento” natural que compacta ainda mais os solos, impedindo a infiltração da água.

Diante do interesse dos empresários rurais em garantir altas produtividades no Cerrado e maiores somas de lucro, os recursos hídricos passam a exercer papel primordial. A grande participação do setor agrícola no consumo de água se explica principalmente pelo uso da água fluvial para a irrigação por pivôs centrais, sendo uma metodologia empregada para irrigar em círculos as culturas. A terra é coberta por irrigação por padrão circular, obtida pela transferência de máquina giratória que fornece água através do movimento rotativo. Esse tipo de irrigação também é denominado como irrigação por aspersão tipo superior. A área que é irrigada depende do alcance total dos segmentos de tubulação disponíveis sobre a máquina.

A intensa extração da água dos rios do Cerrado efetivada pelo sistema de pivôs centrais por aspersão, tal como ocorre no rio São Marcos (fronteira dos Estados de Minas Gerais e Goiás) altera toda a mecânica que envolve vazão, volume e extração hídrica, haja vista que nos períodos de seca, principalmente, a água passa a ser sugada quase que ininterruptamente por bombas d´água instaladas no leito de rios e em represamentos artificiais, esses também chamados de barramentos. Dessa maneira, diante da necessidade de maior demanda fluvial, a água subterrânea, por intermédio das nascentes, chega à superfície com maior intensidade, fazendo que mais água do aquífero chegue à superfície para o abastecimento de rios. A extração hídrica pode, inclusive, alterar vazões, ou seja, um rio, que antes corria lento, pode passar a correr mais rapidamente pelo fato de sua água estar sendo sugada. Seus afluentes, então, também passam a seguir mais velozes. Isso pode acelerar, inclusive, o processo de assoreamento e de erosão.

 

Tristes evidências

O desmatamento desenfreado do Cerrado e o uso descontrolado de suas águas por pivôs centrais em diferentes propriedades agrícolas têm contribuído imensamente com a escassez de recursos hídricos, ou com o estresse hídrico, comprometendo a recarga de aquíferos e, consequentemente, provocando a migração e desaparecimento de nascentes e a drástica diminuição do volume da água ou até o desaparecimento de rios. Segundo Schmidt (2007) é inegável dizer que o manejo inadequado das áreas irrigadas pode gerar consequências desastrosas ao ambiente, quer seja pela poluição ou esgotamento de mananciais ou pela degradação dos solos, por conta da retirada da cobertura vegetal original e o intenso lançamento de água (o que provoca a salinização do solo).

Sendo assim, de forma a exemplificarmos fatos decorrentes das problemáticas aqui ilustradas, a seguir, elencamos algumas situações que evidenciam as consequências do comprometimento hídrico do Cerrado. Os fatos aqui expostos se configuraram como matérias de reportagens veiculadas pelos diversos meios de comunicação[1].

_ Migração de nascentes em áreas de Cerrado: de acordo com Barbosa (2019) o comprometimento da recarga dos aquíferos influencia diretamente a alimentação de nascentes, sendo que não plenamente recarregados, os aquíferos não disponibilizam de volume e pressão hídricas suficientes a fim de alimentar as nascentes que numa bacia hidrográfica se situam em áreas mais elevadas. Nesse contexto, somente as nascentes à jusante seriam alimentadas até que o volume de recarga do aquífero não seja ainda mais comprometido. Tal fenômeno tem ocorrido num dos principais afluentes do São Francisco, o rio Grande, cujas nascentes teriam migrado quase 100 quilômetros a jusante desde 1970.

_ E vai secando o rio Paraná: enquanto escrevemos este artigo, notícias sobre a seca do rio Paraná vêm sendo veiculadas pelos meios de comunicação. O aquífero Guarani alimenta toda a bacia do Rio Paraná: a maior parte dos rios de São Paulo, de Mato Grosso, de Mato Grosso do Sul – incluindo o Pantanal Mato-Grossense – e grande parte dos rios de Goiás que correm para o Paranaíba, como o rio Meia Ponte. Com a diminuição de seu volume de recarga, o aquífero Guarani vem alimentando insuficientemente os rios que dependem dele, sendo uma das principais razões da diminuição da vazão dos rios da Bacia do Paraná.

_ E vai secando o rio das Almas: o rio das Almas nasce no limite do Parque Estadual da Serra dos Pireneus, no município de Pirenópolis. Segue seu curso no sentido sul-norte e compõe a bacia do Tocantins. Banha os municípios de Pirenópolis, Jaraguá, Ceres, Rialma e Nova Glória, constituindo-se para eles a principal fonte de água, além da indústria sucroalcooleira e pecuária. Entretanto, em períodos de estiagem o rio chega a possuir cerca de 50% de água abaixo do nível esperado para o referido período. O fator que intensificou ainda mais a sua seca foram instalações de dezenas de motores de grande porte que retiram água do rio Verde, rio Uru e rio das Almas para a irrigação de plantios de cana-de-açúcar.

_ os últimos suspiros do rio Javaé: quando o rio Araguaia bifurca para formar a maior ilha fluvial do mundo, a ilha do Bananal, um de seus braços, o braço menor do rio, passa a receber o nome de Javaé. O rio Araguaia é alimentado no seu curso superior por águas do aquífero Guarani, associado às formações geológicas Botucatu e Bauru, sendo que a partir do seu curso médio os aquíferos Urucuia e Bambuí são responsáveis maiores pela sua alimentação. A recarga desses aquíferos depende da água da chuva que cai nos chapadões e de sua absorção pela vegetação nativa do Cerrado. Todavia, esses aquíferos se encontram em situações melindrosas, porque não estão sendo recarregados o suficiente, para manter a perenidade e o fluxo d’água, para as nascentes, córregos e afluentes que alimentam o Araguaia. Inúmeras propriedades da região se utilizam desenfreadamente da água do rio Araguaia para a irrigação, sendo que grande parte de seu volume é desviado para represamento. Diante disso, levando-se em conta o longo período de estiagem que é característico das regiões do Cerrado, no final do ano de 2019, um trecho de 10 quilômetros do rio Javaé secou.

_ Vazão crítica do Rio Meia Ponte: a bacia do rio Meia Ponte se configura como sendo de extrema importância para o Estado de Goiás, visto que abrange aproximadamente 50% de sua população. O rio principal é utilizado para diversos fins, desde abastecimento de água, irrigação de lavouras e dessedentação de animais. Por conta da intensidade da extração hídrica a sua vazão entrou em nível crítico, por exemplo, já no mês de setembro do ano de 2019, conforme noticiários locais. Na realidade, existe a ideia de que as chuvas representariam a solução para o aumento de sua vazão, fato que ocorre somente nas primeiras semanas após o período chuvoso. Entretanto, o comprometimento da recarga do aquífero Guarani, por conta dos motivos já expostos neste artigo, além das atividades de irrigação de lavouras e dessedentação de animais praticadas nessa bacia hidrográfica, fazem com que o volume d´água do rio principal volte a recuar rapidamente, configurando-se em filetes d´água em alguns pontos de seu percurso.

 

Considerações Finais

O que se pode concluir, a partir desses estudos nos quais nos debruçamos, escorados em dados irrefutáveis, porque em sua maioria são disponibilizados por pesquisas sérias desenvolvidas por autoridades competentes de universidades e dos próprios órgãos do estado brasileiro responsáveis pela questão hídrica, é que estamos caminhando a passos largos em direção a uma crise de enormes proporções no que se refere ao abastecimento de águas e ao seu uso para fins agrícolas, industriais e urbanos.

Não se trata de um problema local, ou até mesmo regional. Mais do que isso, a crise hídrica ela perpassa fronteiras locais, nacionais e internacionais, e depende muito desses estudos, mas principalmente na aceitação desses resultados pelos órgãos competentes e na adequação de suas políticas públicas, com intensificação de fiscalizações e de busca de parcerias com os produtores para fins de economia e racionalização de um recurso que é essencial para as nossas vidas.

É insuficiente adotarmos campanhas educativas que incentivem as pessoas a economizarem nos seus usos cotidianos urbanos. Isso deve ser feito até para que cada cidadão, desde as crianças até os adultos, tenha consciência que a água doce é um recurso finito, que ela tende a desaparecer com seu uso descontrolado e a contaminação que se faz pela ausência de cuidados e tratamentos. Esse deve ser um processo educativo permanente. Mas não surtirá efeitos se não forem adotadas medidas rígidas para coibir consumos irresponsáveis de grandes produtores, sejam industriais ou, principalmente, rurais, notadamente nas grandes propriedades, onde se concentram os maiores gastos de água.

É inegável a importância da irrigação na produção de alimentos, para a elevação da produtividade, principalmente em uma época onde isso se transformou em elemento forte da geopolítica mundial. Produzir alimentos para a sua população, bem como para conseguir exportar em escala sustentável para o meio-ambiente, fortalece não somente o produtor, mas o próprio estado-nação. Contudo, isso não pode se dar à custa da destruição de fontes imprescindíveis para que se mantenha no seu ritmo natural, o ciclo hidrológico, e que não venha a gerar uma crise de proporções humanas, para além da economia, pela escassez que pode vir a acontecer, com a destruição de veredas, nascentes, mananciais e a transformação de rios perenes em intermitentes, pela quebra dessa relação dialética que também faz parte do equilíbrio como funciona a natureza.

Portanto, com base nos diagnósticos que procuramos apresentar, em toda a sua dimensão técnica e acadêmica, o poder público deve adotar planos, projetos e programas que estabeleçam limites ao uso da água, com a exigência de outorgas que possam comprovar a quantidade de recurso hídrico que está sendo utilizada, de forma a garantir que a vazão dos rios não sofram declínios brutais, que possam a tornar essa situação irreversível.

 

Referências

ARAÚJO, R. et al. Qualidade de um solo sob diferentes usos e sob Cerrado nativo. Revista Brasileira de Ciência do Solo, v.31, n.5, Viçosa, MG, set/out. 2007. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010006832007000500025&script=sci_arttext&tlng=pt Acesso em 05/maio/2020.

BARBOSA, A. S. Livro da Terra. Goiânia: Gráfica e Editora América, 2019.

Fonte da imagem: https://altairsalesbarbosa.blogspot.com/

 

Fernando Bueno Oliveira

Doutorando em Geografia, IESA/UFG

fernandobuenogeo@gmail.com

 

Romualdo Pessoa Campos Filho

Professor/Doutor no IESA/UFG

romupessoa@gmail.com

 

Ficha bibliográfica:

OLIVEIRA, Fernando Bueno; CAMPOS FILHO, Romualdo Pessoa. Águas do Cerrado: tristes evidências. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 10, nº. 12, 6 de agosto de 2020. [ISSN 22380-5525]