CATÁSTROFE CATÁRTICA: CARICATURAS DO CAPITAL - Glauco Roberto Gonçalves

27/05/2020 17:53

1

Todos os filmes e livros de ficção, a bíblia incluída dentre estes, o fim do mundo se apresenta como uma totalidade fechada, formal, cabal e final. Nas ficções, a bíblia incluída mais uma vez, quando o mundo acaba ele não continua: o fim como fechamento.

Uma espécie de big bang às avessas. Tudo some, sobe.

Doce seria morrer no mar. Tão romântico como inexistente esse fim do mundo com ponto final.

Na realidade como momento do que não é falso, o fim do mundo é sádico. Nele o fim se apresenta de forma continuada, permanentemente acabando. Estendido no espaço e no tempo: um fim perene, um perrengue sem fim.

Em cada canto uma instância do fim, em todo momento a continuação do fim.

A realidade acabada põe em curso uma acumulação primitiva do fim.

O fim do mundo como continuação cabal do capital.

 

2

O tédio está entre as armas de destruição em massa mais letais já produzidas pela sociedade.

Quem não morre de fome, morre de tédio disse Eduardo Galeano. O tédio é sempre contrarrevolucionário, escreveram os situacionistas.

O tédio inviabiliza, é inimigo, da preguiça.

A preguiça é o estado da arte do não fazer. É a beleza inerte do corpo. É negação do trabalho. Insubmissão ativa ávida.

A preguiça é um dos pecados capitais. O tédio é um dos pilares do capital.

Se a preguiça é tecnologia sofisticada contra o trabalho, o tédio é mecanismo de captura para o consumo. Não raras as vezes as mercadorias que oferecem alegria geram seu contrário: mais tédio. Não se compra alegria, ela só pode ser encontrada na criação libidinosa, no libido criativo, na subversão deliberada. A forma mercadoria é o avesso da alegria, é o tédio materializado em forma de coisa.

 

3

O fim da vida e das regiões (assim chamadas) selvagens é o estado mais bem acabado da selvageria do dinheiro botando fim à vida em todas as regiões.

 

4

Sempre foi patética a apologia da casa.

Arquitetos, designer, publicitários, fenomenólogos, coachs, psicólogos e filósofos, artistas e geógrafos e outros tantos defensores do lar como lócus da intimidade, do autorreconhecimento e do sucesso-sossego estão agora terrivelmente reféns dos seus argumentos enquanto seguem desesperadamente trancados dentro de seus enfadonhos lares.

A noção de casa, de lar, de habitat que se estabeleceu e prevaleceu ao longo do século vinte e começo do século vinte e um não só reproduziu a forma mercadoria com nuances de afeto por ela como elevou o nível do fetiche da propriedade para o âmago da vida cotidiana: antes e depois de ser sua casa é uma propriedade. Antes e depois de ser tua casa a noção de propriedade se apropriou de você!

A noção de casa que foi defendida como lugar de amor próprio, conforto e segurança vem à tona agora como lugar em que nos aprisionamos. E quando se trata de prisão pouco importa a cor da parede ou o quadro bonito que está pendurado nela. Não importa o quão confortável é sua casa quando ela se torna uma prisão personalizada.

Um dos ganhos mais duradouros do capitalismo contemporâneo foi a prevalência de que a casa ia além de um tipo de confinamento estilizado e atomizado. O american way of live alçou seu mais duradouro voo quando impôs ao mundo essa noção de lar. A parede que agora te confina nunca foi libertadora, mas agora, só agora, depois de um mês trancafiado por ela é que você percebe que a casa que te acolhe encolhe a cada dia ao passo que te aprisiona. 

Quando o arquiteto fordista Le Corbusier arrotava a casa como uma máquina de morar não imaginou que ela seria tão avassaladoramente bem sucedida. 

 

5

A fantasmagoria do capital se materializou na paisagem da cidade. O vazio que se vê nas ruas, nessa imensa cara de domingo que permanece, é o mesmo que preenche a mercadoria.

O reino dos espaços privados ganhou seu estágio final.

O espaço público, o direito à cidade, agoniza na UTI sem respiradores.

 

6

Até um punhado de dias atrás a crença nas liberdades individuais era um dos substratos que compunham o necroliberalismo. Reinava a métrica de que os sujeitos sujeitados à forma mercadoria podiam fazer (comprar) tudo desde que tivessem dinheiro.

O mundo inteiro dentro de casa, com a casa conectada ao mundo inteiro, nos dá prova cabal de que não há indivíduo apartado da sociedade. Quando caiu o céu sob nossas cabeças o teu guarda-chuvas colorido e arrojado também sucumbiu.

A própria dimensão do corpo evidencia sua dimensão coletiva. O corpo tem instâncias que só se efetivam na performatividade coletiva.

Sem smartfone isso que chamamos de corpo é algo amputado, incompleto.

 

7

Acumulação de capital é imediatamente e irreversivelmente crise!

A crise não é econômica: é total.

A totalidade da vida submetida à economia é crítica.

A vida como acumulação de crises é total.

Submeter a economia à totalidade da vida imediatamente!

Os que creem em contos de cifras, parte da assim chamada esquerda incluída, gostam de (des)entender as crises do capital como cíclicas, eles acham que as coisas só existem quando aparecem e podem ser vistas.

A fenomenologia sempre foi mesmo uma religião.

Quem fala em crise do capital sem falar em dissociação do valor, composição orgânica do capital e queda tendencial da taxa de lucro tem um cadáver na boca.

 

8

A negação da morte não coincide com um convite à vida.

 

9

A produção de mercadorias produz doenças. A doença fomenta a produção de mercadorias.

Sejamos todes bem vindes a um novo estágio da geopolítica-econômica das pragas.

Guerra cívil-víral: todos somos homens-vírus-bombas. M’membe nos lembra que finalmente vivemos um momento democrático: foi difundido entre o nós o direito de matar.

 

10

Uma época que é um prazo (Paulo Arantes).

O futuro mais longínquo que se pode imaginar, e ainda assim está cada dia mais distante, é o fim da quarentena. O calendário anual foi substituído pelo calendário quinzenal. Em Auschwitz o futuro como câmara de gás. Agora o futuro movido a respiradores, covas coletivas e guerra por máscaras.

O fim do futuro como realidade de exceção permanente.

A permanência da noção de tempo em suspensão.

O espaço-tempo da cidade em putrefação.

Um século que durou vinte anos.

 

11

O hoje carrega o ontem, e até pouco tempo, anunciava o amanhã.

O hoje carrega o ontem, mas o ontem não voltará.

Quanto desse hoje tomaremos de assalto para produzir amanhãs possíveis?

Urgências da reinvenção do agora.

 

 

Glauco Roberto Gonçalves

Doutor em Geografia Humana pela USP.

Professor do Centro de Ensino e Pesquisa Aplicada a Educação (CEPAE) da UFG.

Email: glaucogoncalves1@gmail.com