CHEGOU O PROFESSOR - Dallys Dantas

16/10/2016 12:00

 

Em seu instigante romance[1], Bernardo Élis descreve a seguinte passagem: “na vida administrativa de um capitão-general havia três fases: a febre com delírio, a febre sem delírio e a prostração”[2]. Ressalvados o contexto histórico e as particularidades profissionais, a carreira docente parece estar fadada a semelhante condição. Ou seja, nós professores estamos sujeitos a passar, cedo ou tarde, breve ou rápido, por essas mesmas três fases.

De modo geral, ocorre o seguinte: de início, deliramos – no sentido de entusiasmo – com a perspectiva de transformação da vida de nossos alunos a partir de nossa prática profissional; passado certo tempo, prostramos – no sentido de acomodação – diante do reconhecimento da limitação lógica que é ensinar algo a alguém, uma vez que o ensino não garante, por si só, a aprendizagem. Além disso, no meio do caminho entre o delírio e a prostração, há ainda a sensação psicológica de relutância. Prosseguir, uma vez já escolhida a profissão – sem contar a necessidade prática de seu exercício, o sustento próprio e, em alguns casos, também da família? Ou não prosseguir, uma vez que é latente o receio de frustração diante de um cenário desestimulante no sentido de recompensa financeira e até mesmo de autorrealização?

Ao chegar à escola, portanto, um professor pode passar por essas três fases. E foi isso o que aconteceu comigo.

 

A febre com delírio

“O general partia para sua capitania sem conhecê-la,

sabendo unicamente que se tratava de um território novo,

onde tudo estava ainda por fazer:

traçava grandes planos para debelar o atraso e a miséria;

pensava imortalizar-se

arrancando aquelas vastidões da barbárie em que se encontravam.

Era a febre com delírio.”

 

Quem de nós, professores, recém-formados ou ainda em formação acadêmica, não já sentiu aquele “friozinho na barriga” ao saber ou imaginar que muito em breve estaria “sozinho” – isto é, sem a presença do professor orientador de estágio – regendo uma sala de aula? Quantos planos de aula, estratégias de ensino, maneiras de falar e/ou de agir ensaiamos antes de adentrar esse lugar desconhecido! Quantas incertezas, dúvidas; quanta insegurança, angústia! Provavelmente a única certeza é o fato de que queríamos dar o melhor de nós. Impressionar. Agradar. Inspirar. Transformar. Seja lá o que cada um mais almejava, certamente muitos de nós, acometidos pela febre da ansiedade, deliramos ao chegar à escola.

Manhã do dia 06 de agosto de 2012. Esse foi o momento em que, de fato, cheguei à escola. A sensação foi avassaladora. Quase não me segurei em pé. Na sala de aula, não se sabia quem estava mais intimidado: a turma, como ocorre quase sempre quando chega um novo professor; ou eu, o professor que não sabia como encarar uma turma de adolescentes. Ainda em processo de formação acadêmica, e sem sequer haver passado pelo estágio obrigatório na universidade, fui contratado para assumir aulas de Geografia em uma escola pública estadual de Goiânia. Estava ali, portanto, um aluno-professor (ou professor-aluno?).

O fato é que, após esse breve choque de realidade, aos poucos fui me adaptando ao ambiente. Bastou não muito tempo para que eu começasse a manifestar a minha genuína empolgação. Ser chamado de professor soava para mim como um elogio. Era, de fato, febre com delírio.

A partir daí concentrei quase toda a minha atenção e o meu esforço a fazer o melhor pelos meus alunos. Tanto ao ponto de causar ciúmes na esposa, uma vez que conversar com alunas não era visto por ela como uma simples atenção profissional. Enfim, procurava me desdobrar para agradar a todos. Explicava o conteúdo da maneira mais clara possível; propunha atividades diversificadas, observados os limites da escola; esforçava-me ao máximo para tornar as aulas interessantes e agradáveis e fazer com que eles aprendessem o conteúdo. Afinal, agradando a eles eu estava também agradando a mim. E minha cabeça não parava de imaginar planos para eles. Sonhava dando aula. Isso mesmo. Coisa de quem delira.

Mas, para o meu descontentamento, essa fase não durou muito.

 

A febre sem delírio

“Chegado a seu governo, percebia imediatamente que

aqueles planos concebidos em Lisboa, ou no Rio de Janeiro,

não eram aplicáveis no interior do Brasil.

Procurava reformá-los, conformá-los com a realidade,

cheio ainda de entusiasmo.Era a febre sem delírio.”

 

A febre sem delírio iniciou-se a partir das primeiras avaliações bimestrais. O motivo? Possivelmente a decepção com o rendimento, em termos de notas, dos alunos. É que por mais que eu tivesse me esforçado para ensinar bem a matéria e elaborar uma boa avaliação – a famosa “prova”, instrumento avaliativo obrigatório na escola –, o resultado não foi dos mais animadores. E se foi desanimador para os alunos, acredite, foi mais ainda para o professor.

Importa salientar que, em relação à aprendizagem escolar, sabe-se que avaliar é diferente de medir ou verificar. Estes últimos nada mais fazem do que aferir se os alunos “absorveram” ou não o conteúdo ensinado, como se aprender fosse simplesmente receber algo (o conteúdo) de alguém (do professor), fato que faz lembrar o conceito freireano de educação bancária. A avaliação, no entanto, diz respeito ao processo que, dentre outros aspectos, averigua, orienta e interfere na aprendizagem discente. Embora iniciante no trabalho docente, essas distinções estavam claras para mim. E isso provavelmente em razão da boa formação pela qual eu passava na universidade.

Nesse sentido, as primeiras avaliações foram meticulosamente elaboradas tendo em vista a realidade escolar e com base no conteúdo abordado nas aulas e presente no livro didático. Habilidades e competências básicas, a exemplo de interpretar mapas e correlacionar características do clima e da vegetação, foram exigidas nas questões objetivas e discursivas que compunha a “prova”. Nada disso, contudo, foi suficiente para que a esperada aprendizagem fosse demonstrada na resolução dessas questões.

Conforme salientado, isso não impediu que o processo avaliativo continuasse. As orientações e intervenções necessárias ao melhoramento desse quadro foram realizadas. Diante desse cenário não é exagero afirmar que avaliar é, sem dúvida, um dos maiores desafios do trabalho docente. Por esse motivo, a febre permanecia. O delírio, porém, a cada dia se esvaecia.

 

A prostração

“Os desenganos,

a indiferença total com que eram recebidos seus planos de reforma,

acabavam por vencê-lo.

Caía na prostração geral”.

 

A prostração, não chegou da noite para o dia. Também não foi somente consequência da ligeira decepção com o rendimento dos alunos nas avaliações. Fatores externos à escola combinados a fatores internos foram determinantes para o início dessa lamentável fase. E o resultado mais perverso dessa combinação eu vivenciei no Conselho de Classe[3].

Por quê? Como? Porque nesse momento pouco importa o que o professor e os alunos fizeram durante o bimestre. O mais importante é que a escola apresente um rendimento satisfatório, nem que para isso seja necessário realizar alguns “ajustes” nas notas. Afinal, no âmbito da educação púlbica brasileira, infelizmente número é tudo. E como isso acontece é simples: por exemplo, se o aluno tiver alcançado média 4,5, não custa nada o professor – especialmente se for de disciplina de “menor peso”, a exemplo de Geografia, Sociologia, História – “dar uma ajudinha” a ele, “arredondando” essa média para 6,0.

Os argumentos para essa manobra – perversa ou justa, isso depende do seu ponto de vista – geralmente são: primeiro, considerando que a média mínima exigida pelo Ministério da Educação é 5,0, embora na maioria das escolas públicas essa média é regimentalmente fixada em 6,0, para que correr o risco de o aluno, ao conferir o boletim, recorrer a instâncias superiores, como Secretaria de Educação ou MEC, para rever essa média? “Falta tão pouco para ele (o aluno) alcançar a média, é melhor resolver isso logo”, normalmente argumenta a coordenação ou a direção; segundo, o conjunto de notas baixas (inferiores a 6,0) prejudica o status da escola, pois estagna ou diminui o índice de desenvolvimento da educação nela realizada. Por isso todo e qualquer esforço é válido para aumentar esse índice, uma vez que é preciosíssimo para a imagem da escola, havendo até placa onde são estampados os dados obtidos pela unidade.

Por esses motivos, de quase nada adianta o esforço do professor em empreender um ensino voltado à efetiva aprendizagem dos alunos, aquela que ultrapassa a quantificação (notas) para fins estatísticos. Para ilustrar essa afirmação, basta considerar que, ao trabalhar com o conteúdo de democracia, por exemplo, uma boa atividade que associe teoria e prática é a formação de um grupo estudantil que possa representar os interesses da classe ou de toda a escola. Assim, propõe-se que os alunos se organizem democraticamente em forma de grêmio estudantil, de modo a auxiliar a gestão na  busca de melhorias para a unidade escolar e também a garantir os direitos discentes na escola. Por mais incrível que possa parecer, esse tipo de movimento não é bem visto por alguns professores e, principalmente, pela gestão escolar. Isso porque a existência de um grupo de alunos bem articulado e consciente de seu papel na escola parece incomodar o trabalho desses profissionais. Algumas de suas reclamações são: (dos professores) “ah, esses alunos vão querer exigir demais da gente!”; (da gestão) “esse grêmio vai querer fiscalizar tudo que a gente for fazer!”. Quem já trabalhou em escolas que vivem (ou viveram) situação semelhante sabe que esse tipo de exclamação não é invenção.

Em resumo, uma postura profissional crítica, ousada e, por isso, diferenciada de boa parte do corpo docente de algumas escolas, é simplesmente taxada de “empolgação de iniciante”. Daí comentários como: “ele tá começando agora”; “logo essa animação vai passar”; “quero ver manter esse pique depois de 10 anos de sala de aula”; etc. Além da injeção de desânimo aplicada pelos colegas, há agravantes. No caso de professor em situação de contrato temporário – situação de boa parte do quadro de professores do Estado de Goiás –, existe ainda o desestímulo do salário. É que o “contrato” – termo pelo qual é carinhosamente identificado o professor temporário –, independente de sua titulação – especialista, mestre, doutor, etc. – recebe praticamente a metade do vencimento (salário base) do professor concursado. E se para este o seu salário não é digno, imagine para o contrato? Além disso, a instabilidade no emprego é angustiante. Sempre que o final do ano letivo se aproxima brota uma agonia entre os contratos para saber se continuam ou não no próximo ano. Nesse contexto, contrato ou não, o professor que almeje voar mais alto corre o risco de ter o mesmo fim de Ícaro[4].

Diante toda essa situação, presumo ser compreensível o fato de se chegar à fase da prostração.



[1] ÉLIS, Bernardo. Chegou o governador. 3ª ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1998.

[2]Esta afirmação não é atribuída a um ex-governador das capitanias de São Paulo e Mato Grosso, o Marquês de Aracati, João Carlos Augusto D’Oeynhausen de Grevenbourg (PALACÍN, 1972 apud ÉLIS, 1998).

[3] Caso não seja de amplo conhecimento o que é esse Conselho e qual o seu papel na escola, eis um breve esclarecimento: trata-se de um momento deliberativo regimental e imprescindível ao ambiente escolar, ou seja, uma espécie de reunião obrigatória, na qual a comunidade escolar (professores, coordenação, direção e pais) e, no caso de escola publica, representantes da secretaria de educação (municipal ou estadual) discutem e avaliam o rendimento escolar de cada aluno.

[4] Personagem da mitologia grega que caiu no mar após sua tentativa de voar mais alto, isto é, mais próximo do Sol. Uma vez que as asas que o sustentava eram coladas com cera, ao aproximar-se do Sol a cera derreteu e, consequentemente, Ícaro caiu.

 

Dallys Dantas

Mestrando em Geografia pela UFG e professor na rede pública e privada de Goiânia 

dallysdantas@gmail.com

 

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Ficha bibliográfica:

DANTAS, Dallys. Chegou o professor. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.6, n.8, 16 de outubro de 2016. [ISSN 22380-5525].