CONSTITUIÇÕES DE ESPAÇOS NEGROS URBANOS - Fernando Bueno Oliveira
Espaço e territorialidade: algumas contribuições teóricas
A relação entre a sociedade e o espaço, dada a sua diversidade, resulta em organizações espaciais, muitas das vezes, delimitadas pelos padrões culturais. As territorialidades tomam forma a partir do reconhecimento que um grupo étnico faz do seu território, no qual plantam, constroem, realizam festas, cerimônias, rituais religiosos, vivem e sobrevivem; ao mesmo tempo, essa organização espacial também exerce influência na dinâmica do grupo.
Nesse viés, este ensaio, num caráter geral, propõe-se a pensar os espaços urbanos etnicamente diferenciados, à luz de diferentes teóricos que abordam espaço e territorialidade, considerando as trajetórias de espaços negros urbanos, tendo como exemplos, alguns casos de constituição e de formação desses espaços. Perpassa, ainda, pela representação que determinados lugares possuem para a prevalência de experiências sociais e de redes de sociabilidades. Assim, não é de nossa pretensão trazer à tona afirmações prontas e não suscetíveis a futuras argumentações, mas a de apresentar possibilidades no estudo acerca de espaços negros no Brasil, que, por sinal, é muito instigante.
Ao se tratar da relação entre cultura, trabalho e natureza, torna-se necessário o entendimento da territorialidade como elemento fundamental que ao mesmo tempo compõe e influi diretamente na identidade de um grupo étnico. Em Goiás, alguns grupos tradicionais do Cerrado servem de base para a identificação da constituição de territorialidades, como, por exemplo, acontece no Engenho, área Kalunga, onde se observa que sua territorialidade se dá na inserção do grupo étnico no contexto histórico da região, marcada pela formação de quilombos no século XVIII, assim como aponta Mary Karasch (1996, p. 252).
Tal exemplo pode se constituir como fundamento para se iniciar os estudos atuais que envolvem os territórios/espaços negros e quilombos urbanos. Fazendo-se uma transposição teórica, podemos, perfeitamente, acrescentar os lugares da metrópole, principalmente bairros próximos [ou não] e, por vezes, contíguos, que são “vividos, conhecidos e reconhecidos pelos(as) moradores(as) dos núcleos negros rurais” (RATTS, 2003, p. 45).
Na análise dos espaços negros urbanos, foi em Raffestin (1993) que encontramos o aporte necessário para abarcarmos o espaço do qual os grupos étnicos se apropriam “concreta ou abstratamente pela representação”. Nas expressões adequadas desse autor, trata-se de “um território visto e/ou vivido”, “um local de relações” e, enfim, “o espaço que se tornou uma relação social de comunicação” (RAFFESTIN, 1993, p. 144-147).
O espaço é elemento constitutivo e produto de encontros/confrontos étnicos e raciais e a unidade de análise pode variar do território nacional à habitação familiar (RATTS, 2004b). Contribuições de Léfébvre (apud Corrêa, 2005) apontam para o fato de que o espaço é o lócus da reprodução das relações sociais de produção ou, em outras palavras, da sociedade. A assertiva de que o espaço é social também inspirou Milton Santos (1982) quando se refere à formação sócio-espacial, sendo esta um ponto para explicar que “uma sociedade só se torna concreta através de seu espaço, do espaço que ela produz e, por outro lado, o espaço só é inteligível através da sociedade” (SANTOS, 1982, p. 26). Não é viável falar de sociedade sem falar de espaço e vice-versa, portanto, a categoria formação sócio-espacial permite uma concepção paradigmática no sentido de que o espaço é mais que um reflexo social e sim um fator social.
A corrente humanista e Cultural na Geografia (BONNEMAISON, 2002, pp. 83-87; CLAVAL, 2002, pp. 133-137) priorizou categorias como paisagem, região e lugar, já que a subjetividade, a intuição, os sentimentos, a experiência eram, sob essa perspectiva, elementos fundamentais para a compreensão do mundo real. As noções de espaço sob essa corrente filosófica firmavam-se e/firmam-se sob a definição de espaço vivido enquanto um campo de representações simbólicas imbuídas de sentimentos e afetividades lançadas por grupos sociais.
A etnogeografia tem possibilitado uma base teórico-conceitual e metodológico-instrumental que vem permitindo que o pesquisador amplie suas perspectivas de apreensão das realidades estudadas quando procura conhecer junto aos sujeitos pesquisados as dimensões simbólicas e afetivas de suas espacialidades. É preciso haver o entendimento da territorialidade como elemento fundamental que ao mesmo tempo deve compor e influir diretamente na identidade de espaços/territórios negros (AMEIDA, 2002, p. 43-46).
Estudos voltados ao espaço urbano, como os realizados por Corrêa & Rosendahl (2011) permitem uma transitoriedade sobre noções de espaço vivido e de reprodução das relações sociais numa perspectiva em que se possam ser revelados “as práticas sociais dos diferentes grupos que nele produzem, circulam, consomem, lutam, enfim, vivem e fazem a vida caminhar” (CORRÊA, 2005, p.32). É na cidade que se configuram as relações sociais, tal como sintetiza a autora Lana de Souza Cavalcanti (2001), que se fragmenta a sociedade por meio de aspectos sociais, culturais, raciais e de gênero, portanto, os estudos que envolvem espaços negros urbanos não podem, logicamente, ausentar-se do espaço urbano para enfocar contradições, espacialidades vividas diferenciadas por quilombolas que se apropriam do território.
Espaços negros urbanos: algumas trajetórias
Quanto aos espaços negros urbanos, é comum, nas referências que são feitas à posição dos pretos e pardos nas cidades brasileiras, a menção à inexistência de guetos – bairros onde são confinadas certas minorias, por imposições econômicas e/ou raciais – como sinal de ausência de qualquer tipo de segregação racial. O gueto norte-americano sintetiza a imagem de discriminação racial aberta e da dominação branca. No pólo oposto estaria o Brasil, onde pretos e brancos pobres compartilham o espaço das vilas e favelas, numa espécie de promiscuidade racial sustentada pelo laço comum da miséria e da opressão econômica.
Em consideração aos seus espaços físicos de moradia, diferentemente dos quilombos rurais, que, por sua vez, buscam junto aos órgãos expedidores a titulação da terra, os espaços negros urbanos brasileiros se situam num contexto citadino onde se inserem no tecido urbano e vivenciam cotidianos de vida e socialização. Nesse caso, inexiste a busca da aquisição de títulos de terra, mas, por outro lado, em se tratando, geralmente, de áreas periféricas e/ou de aglomerados subnormais, há a necessidade de uma infraestrutura básica (moradia, saneamento, asfalto, escola, centro comunitário, área de lazer, dentre outros elementos) e a escrituração de casas, que não atendem integralmente as necessidades de seus moradores.
Na cidade, não por um acaso, os espaços negros se constituem nas periferias ou em outras áreas específicas, geralmente, associadas à imagem de marginalidade. Ao longo de suas trajetórias, esses espaços foram estigmatizados e removidos das áreas que não eram bem vistos e aceitos.
Importantes trabalhos vieram a contribuir no sentido de se entender as trajetórias de espaços negros em algumas cidades brasileiras, tais como os de Raquel Rolnik, de Andrelino Campos e de Claudelir Correa Clemente & José Carlos Gomes da Silva. Tais trabalhos demonstram a constituição de espaços negros urbanos nas cidades de São Paulo/SP e Rio de Janeiro/RJ (ROLNIK, 2007), a transição dos quilombos às favelas cariocas (CAMPOS, 2012) e das práticas culturais urbanas relacionadas com seus territórios sociais nas cidades de São Paulo/SP e Uberlândia/MG (CLEMENTE & SILVA, 2014).
A autora Raquel Rolnik (2007, pp. 75-83), buscou as origens e ligações, a partir do final da escravidão, de espaços negros nas cidades de São Paulo/SP e Rio de Janeiro/RJ, atentando para as suas particulares inscrições nessas cidades ao longo do tempo. Percorreu os espaços negros entendendo que eles se diferenciam dos demais a partir de suas constituições e de suas histórias. São espaços que formam a periferia dessas duas metrópoles, marcados pela marginalização e estigmatização.
O geógrafo Andrelino Campos delineia por esse caminho de formação/composição das favelas cariocas realizando uma importante reflexão sobre a constituição de espaços periféricos na cidade do Rio de Janeiro/RJ, empreendendo uma análise da relação entre fator racial e espaços ocupados com o mesmo olhar de Beatriz Nascimento (1982). Em seu trabalho, Campos (2012, pp. 51-62) remonta a mobilidade dos quilombolas que de espaços de quilombos participaram da construção do espaço urbano de diferentes cidades, com ênfase à formação das favelas cariocas.
Os autores Claudelir Correa Clemente & José Carlos Gomes da Silva (2014) desenvolveram um artigo baseado em etnografias de afrodescendentes de Uberlândia/MG e de São Paulo/SP com a busca de experiências sociais de cada grupo com seus territórios e formas de sociabilidades. Interessante que os referidos autores trabalham a noção do que denominam “a força imagética da territorialidade, traduzida em conceitos como quilombos, terreiros e territórios negros” (p. 87).
No mesmo trabalho, os autores imprimem a ideia de que as práticas culturais congadeiras percorrem diversas ruas e bairros de Uberlândia/MG reafirmando a presença negra naquela cidade e realçando as identidades individuais e do grupo, “ao mesmo tempo em que engendram uma rede de apoio social” (p. 99). Em São Paulo/SP, “o segmento juvenil que se situa nas grandes regiões periféricas das zonas leste e sul [...] tem procurado expressar, ao contrário dos seus pais, a filiação à ancestralidade africana” (p. 102), o que é perceptível nas apresentações nos saraus literários.
Para eles, a cultura hip-hop, as tradições congadeiras mineiras e os saraus da periferia paulista revelam as proximidades no que diz respeito às relações com seus territórios sociais que, embora marcados pela segregação espacial, permitem instaurar redes de sociabilidade que reafirmam o pertencimento à cultura negra.
No estudo dos quilombos urbanos de Goiás, ainda são parcas as contribuições científicas que levem em conta as suas significações, suas origens, suas trajetórias urbanas e/ou rurais, bem como as suas manifestações culturais. Levando-se em conta o desenrolar da nossa pesquisa, em nível de mestrado, sobre a comunidade Jardim Cascata, situada na região metropolitana de Goiânia/GO, no município de Aparecida de Goiânia/GO, trata-se de uma comunidade quilombola reconhecida pela Fundação Cultural Palmares. Num procedimento de sermos (re)conhecidos pela comunidade percebemos que suas trajetórias, suas formações identitárias, o seu território (com as devidas diferenciações no que tange ao espaço urbano), os símbolos e suas representações, as festas e a constituição de um espaço social, são aspectos definidores da dinâmica urbana/espacial e da efetiva apropriação do território pela comunidade.
Para a geógrafa Ana Fani Alessandri Carlos (1996, p. 67), cada agrupamento negro representa uma porção do espaço apropriável para a vida – apropriada através do corpo – dos sentidos – dos passos de seus moradores. Essa apropriação perpassa, inclusive, por manifestações populares que podem possuir diferentes origens.
Chama a atenção que a comunidade pesquisada se reconhece em seu lugar. As festas de sábado à noite e suas danças, principalmente o hip-hop, por exemplo, dão uma ressignificação ao termo “quilombo”, quando quilombo, favela, hip-hop, grafite, periferia, entre outros elementos simbólicos se posicionam lado a lado.
A comunidade quilombola Jardim Cascata não se configura como um gueto urbano e isolado. Na realidade, existe uma constante mobilidade dos quilombolas para os demais bairros da região metropolitana e para a capital. Contudo, nos finais de semana as famílias se aproximam e as festas acabam assumindo um importante papel de apropriação do território físico e a constituição de um território social. Tal significado coincide com a visão de D´abadia (2012, pp. 27-28), a qual atesta que a festa constitui, do ponto de vista da geografia, uma oportunidade de primeira ordem para compreender a natureza do laço territorial.
Em síntese, a geografia cultural numa abordagem etnogeográfica busca penetrar na intimidade dos grupos culturais, o vivido pelos homens, concretizado em crenças, valores e visão de mundo, o que reflete na constituição do espaço e na formação de territorialidades. Nessa abordagem, os estudos que envolvem os espaços negros urbanos são muito instigantes e poderão contribuir para o entendimento da segregação urbana e daquilo que chamamos de apartheid velado que, se, por um lado, confina a comunidade à posição estigmatizada de marginal, por outro, nem reconhece a existência de seu território, espaço-quilombo singular.
Referências
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Fernando Bueno Oliveira
Professor licenciado em Geografia e Mestrando do Programa de Pesquisa e Pós-Graduação
Interdisciplinar em Ciências Sociais e Humanidades: Territórios e Expressões
Culturais no Cerrado – TECCER/UEG pela Universidade Estadual de Goiás.
E-mail: fernandobuenogeo@gmail.com
Ficha bibliográfica:
OLIVEIRA, Fernando Bueno. Constitução de espaços negros urbanos. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.5, n.7, 01 de dezembro de 2015. [ISSN 22380-5525].