CONTRA O “OUTRO”: O DISCURSO DE ÓDIO COMO CAPITALIZAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL - Armison Rodrigues Pereira

26/09/2018 15:22


Ilustração: Pawel Kuczynski. 

 

Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?

Bertolt Brecht.

 

Vê-se ascender no Brasil o autoritarismo como modalidade de resposta às questões que se colocam como “urgentes” tais como: corrupção e violência. Ressurge (peno menos com mais ênfase) o imaginário colonial onde tudo deve ser resolvido a bala ou com o uso da violência (como se essa já não fosse perpetrada diariamente pelos dispositivos “legais” do poder soberano sobre a vida). Esse entendimento minimalista do mundo tem encontrado força no modus operandi político contemporâneo (bolsonarização da política) que se caracteriza pela polarização conflitiva entre sujeitos. Deste embate, define-se duas posições antagônicas de sujeitos: os que devem ser preservados (conservadoristas) e os que devem ser destruídos (o sempre “outro”).

Quem é este outro que deve ser aniquilado? O outro é o negro, os quilombolas, a mulher, os indígenas, os camponeses, os sem-terra, os sem-teto, os imigrantes, a comunidade LGBTS. O outro é a sombra paranoica do sempre inimigo à espreita. O outro é contra quem o ódio se transforma em tanatopolítica (política da morte). O outro é a razão dos muros e dos medos fabricados. O “outro” assim como o “eu” tem de ser construído para produzir o efeito real em que paranoia e realidade se confundem.

A razão de ser desse “outro”, posto como categoria inferior, serve a um tipo de projeto neoliberal antipolítico proibitivo de direitos. Nesse interim, direitos são vistos como privilégios e privilégios são consagrados a direitos, a saber no primeiro caso, temos como exemplo a política de ações afirmativas, no segundo caso temos o auxílio moradia para juízes que possuem imóveis, isto para ficar em apenas dois exemplos. Segundo dados de pesquisa do Instituto Ipsos, realizada no começo de abril de 2018, 66% dos brasileiros acreditam que os direitos humanos protegem mais os bandidos do que a vítimas. Vemos então, que o discurso da proibição dos direitos, do cancelamento, só pode funcionar numa sociedade patologicamente construída para negar o “outro” como um ser de direitos, daí decorre o novo mantra de que “bandido bom e bandido morto”.

Casara (2017) ilustra bem como se dá o processo em que o “outro” é instaurado a inimigo: “O inimigo é construído a partir tanto de preconceitos quanto de estereótipos e passa a ser identificado como uma ameaça e, por vezes, a causa de todos os males. O outro torna-se um monstro, em uma espécie de regressão a padrões de pensamento da primeira infância, e a exclusão/extermínio da diferença é a solução para a superação do medo.” Curioso que este “outro”, sujeito interno (nordestinos, indígenas, feministas, quilombolas), sujeito externo (no nosso caso os venezuelanos) são coisificados ora como “estrangeiros”, ora como “anormais” em oposição aos de “dentro” e aos “normais”, a esses últimos a cidadania porque são bons, aos outros, as minorias “que se curve às maiorias”, “que desapareçam” como já mencionou o presidenciável.   

Os outros são os sujeitos tidos como os indesejáveis, os forasteiros, os que colocam em risco o patrimônio, Deus, a família e os “bons costumes”. A “ordem do discurso” contemporânea informa que os “cidadãos de bem” estão levando a cabo uma nova “inquisição” em que a velha dicotomia entre “bem” e “mal” reaparece como categoria política central. Agamben (2015) ao falar do campo, do extermínio dos judeus, nos alerta para o fato de que “o inimigo vinha antes excluído da humanidade civil e carimbado como criminoso”, pois logo em seguida, “torna-se licito aniquilá-lo como uma “operação de polícia””

Congratulando o “bem”, em oposição ao “mal”, o presidenciável Jair Bolsonaro sabe capitalizar em seu favor o moralismo na política. Ele sabe manipular o medo como afeto político. Foucault (2014) nos mostrou que o discurso serve tanto para “manifestar” quanto para “ocultar” o que se deseja. O discurso de ódio ao “outro” (às mulheres, aos quilombolas, aos homossexuais, aos indígenas) nas falas de Bolsonaro tem um caráter explicito de violência e um caráter implícito de hipocrisia em que ele nega, minimiza e naturaliza o efeito da violência que ele mesmo alimenta. Com essa aparente contradição lógico-discursiva ele parece agradar de imediato os neofascistas ao passo que se coloca ao lado do cidadão comum, que cansado da “política” se torna o próprio antipolítico que ele encarna (mesmo tendo feito da política um negócio bastante lucrativo).   

A adesão ao discurso de ódio, às minorias, mostra um Brasil que não quer se assumir como misógino, racista, classicista e homofóbico. É necessário lembrar que a “bolsonarização” da política escancara o que há de pior na busca pelo poder de um país que não rompeu com a lógica do senhor e do escravo, mas, esta não se explica por si mesma, ela é, também, resultante do golpe neoliberal contra a presidenta Dilma Rousseff (2016) em que suspendeu-se a democracia e o estado de direito no Brasil, pondo em seu lugar a exceção que virou regra (Estado de exceção). Em Casara (2017) um dos sintomas do “Estado pós-Democrático” é o “esvaziamento da democracia participativa” a partir da “demonização da política” e do fim da crença “de que não há alternativa para o status quo”, partindo desse entendimento “o Estado e a Política são vistos como inimigos, como algo que não interessa às pessoas, e não como espaços de luta por uma vida mais digna.” Por certo descobriram que a crise no qual (não só Brasil se encontra) “é, na verdade, um modo de governar as pessoas”, essas, impotentes frente ao seu proposital abandono.  

Felizmente, contra esse movimento sombrio que coloca em risco não só o futuro do país, mas da democracia, da educação, dos corpos matáveis da periferia, insurge a luta das mulheres e de todos os que não se veem representados pelo belicismo da política cinza - porque sem cor, porque sem o outro, porque estéril, porque atômica e perversa. Falta a grande parcela da população brasileira o entendimento de que a razão de ser da política é que ela é um meio, uma medialidade, não um fim em si mesma a serviço de um “projeto” messiânico/puritano de mundo em que a alteridade é demonizada. Irreparavelmente seremos traspassados pela política, cabe a nós decidirmos, pela palavra que nos foi roubada e pelo gesto que nos foi proibido, reinventá-la como ato de liberdade e de dignidade humana. A experiência de impotência que temos experimentado não deve nos imobilizar, mas nos potencializar a assumirmos o desafio de conduzir o próprio destino com os outros, não contra os outros, pois não é esse “outro” como afeto e como potência que amplia nosso significado de pessoa humana no mundo? Não é diante desse outro que percebo que sou também um outro de direito e de fato?

Por hora (em tempos de silenciamento e de desamparo) fiquemos com o fragmento da poesia de Alberto Pucheu, retirada do livro: “para que poetas em tempos de terrorismos” em que ele nos convida ao “possível e o impossível de cada um”.

 

O golpe

[...] há pessoas que quebram

a linha do tempo, que estão preocupadas

com o golpe que assolou o país, mas

dá vontadade igualmente, e ainda mais, de sair

dali para falar em sala de aula o que até ontem não teria dito,

para falar de poesia e política em sala de aula,

para escutar o que os alunos tem a dizer

neste momento, descobrindo onde estão os focos

de desobediência, ou para ocupar as ruas,

as escolas, as universidades, os prédios estatais

ocupar a cidade e a linguagem de um modo singular

para escapar do blábláblá do senso mais comum

ainda que o meu, para ocupar a cidade

e a língua exatamente para desocupá-las,

para abrir brechas nelas, para permitir

que por essas frestas um outro, convidado,

possa entrar, para deixar ali o possível

e o impossível de cada um, de cada vida,

sinto que a única coisa que ainda posso fazer

é colocar meu grito, meu nervo, meu sangue

e meu vômito imediatamente antes do começo

de qualquer escrito, para que ele venha,

talvez, assim, carregado de um corpo

que nem seja ainda o meu (o meu corpo),

mas que seja o corpo, digo, o grito, o nervo,

o sangue e o vômito de pelos menos alguns de nós.

 

Referencias

CASARA, Rubens RR. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. – 1º ed. – Rio de Janeiro: Civilizaçao Brasileira, 2017.

AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: notas sobre política; Tradução Davi Pessoa Carneiro. – 1. Ed.; 2. reimp. – Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2015. – (FILÔ/Agamben).

Foucault, Michel. A ordem do discurso: aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 / Michel Foucault ; Tradução Laura Fraga de Almeida Sampaio. – 24. ed. – São Paulo : Edições Loyola, 2014. – (Leituras filosóficas).

PUCHEU, Alberto. para que poetas em tempos de terrorismos?. [2017]. Beco do Azougue Editoral Ltda. Rua visconde de Pirajá, 82, subsolo sala 115 CEP 22461 – 000 – Rio de Janeiro – RJ.

Fonte da ilustração: https://www.laparola.com.br/a-critica-social-sarcastica-de-pawel-kuczynski (acesso em 26 set. 2018) 

 

Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás.
 
Especialista em Docência Universitária e em Metodologia do Ensino de História e Geografia, 
 
ambas pela Faculdade Ávila de Ciências Humanas e Exatas, LIBER, Brasil.
 
Professor de Geografia da Escola SESI SAMA, Minaçu-GO.
 
E-mail: armisonrp@gmail.com         cccc  

Armison Rodrigues Pereira 

Licenciado em Geografia pela Universidade Estadual de Goiás.

Professor de Geografia da Escola SESI SAMA, Minaçu-GO.

E-mail: armisonrp@gmail.com
 

Ficha bibliográfica:

PEREIRA, Armison Rodrigues. Contra o "outro": o discurso de ódio como capitalização política no Brasil. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 8, nº. 10, 29 de setembro de 2018. [ISSN 22380-5525]