DE ONDE FALO? UMA CRÔNICA-ENSAIO SOBRE GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO - Bruno Cezar Malheiro

31/03/2021 22:24

Foto: Luiz Braga

 

Eu acabara de terminar o curso de mestrado quando fui selecionado por um conjunto de organizações sociais, movimentos populares e Ongs da Amazônia para falar em nome da região em um evento nacional que reunia intelectuais e organizações populares de todas as regiões do país. Quando chegou o momento da mesa e encontrei aqueles que até então só havia lido seus livros, percebi que eu era um estranho naquele ninho. Nenhum deles me conhecia ou já havia me visto antes, e a minha dificuldade de interação era algo, até certo ponto, justificável. Ficamos nas primeiras fileiras do grande auditório em lugares próximos por um bom tempo, até que, em determinado momento, percebi que eles achavam que eu estava ali como membro da organização do evento, o que ficou comprovado quando um dos professores me pediu para pegar água para todos.

A mesa estava organizada por um representante de cada região, além de um mediador. O chefe de cerimônias, então, começou a chamar os professores que comporiam a mesa, começando pela região sudeste, depois a região sul, a região centro-oeste e, por fim, a região nordeste, além de mim, da região norte. A ordem de fala seguiu a ordem, através da qual, todos fomos chamados.

Quando anunciado o professor representante do sudeste, o chefe de cerimônias apenas falou seu nome e descreveu rapidamente seu currículo, fazendo o mesmo com o representante do sul e do Centro-Oeste. À apresentação do representante do Nordeste e à minha, foi acrescida da frase: “falando a partir de...”

De certa maneira, as falas anteriores às duas últimas, tentaram construir panoramas nacionais e pareciam sair de lugar nenhum. Por outro lado, a marcação inicial das duas últimas falas, embora ambas tenham também tentado construir contribuições de abrangência nacional, foram, previamente, localizadas, circunscritas, como se a região de onde as mesmas saiam, por algum tipo de magia, incompetência e particularidade extremada, não pudessem fugir de suas jurisdições, não pudessem ultrapassar as fronteiras impostas a elas pela vontade de percepção daqueles que, naquele momento as ouviam.

Como sempre há imprevisibilidades nestes momentos, o debate, que privilegiou uma escala nacional, por incrível que possa parecer, tomou pontos debatidos nas últimas duas falas como elementos de problematização. Lógico que, percebendo o lugar de enunciação para nós reservado, conseguimos subvertê-lo, também porque aproveitamos o fato de sermos os últimos a falar.

Isso não parece tão anormal, em um outro evento que fui chamado, também pelos movimentos sociais, para compor a mesa de abertura, juntamente com um professor e amigo do Rio de Janeiro, aconteceu algo semelhante: uma professora, antes que eu começasse a falar, chegou até mim dizendo em meus ouvidos: “seja rápido para termos tempo de debate”.  Fui o segundo a falar numa mesa de abertura de duas falas, e logicamente, ela restringia o debate às contribuições da primeira fala. Mal sabia ela que seu sussurro me fez construir um sentido distinto daquele que havia previamente pensado à minha intervenção e que sua frase ajudou para que minhas reflexões tivessem mais precisão e contundência.

O mundo da universidade é, claramente cheio de hierarquias e, geralmente, as pessoas lutam muito mais por posições privilegiadas no interior desse mundo do que propriamente por fazer com que este mundo consiga interferir em outros mundos. Mas não quero aqui produzir uma crítica ao mundo acadêmico, até porque gente muito inteligente, como Pierre Bourdieu, já fez isso com muito mais profundidade do que eu possa tentar nesse pequeno texto.

O que quero referenciar nas duas situações contadas é o fato de que não se fala impunimente de lugares nunca ouvidos. O lugar a partir do qual se fala, interfere diretamente na capacidade de circulação daquilo que se diz. Existe um enorme desequilíbrio entre os lugares de enunciação, e não digo isso apenas situando regiões diferentes, pois isso também se opera quando lidamos com posições sociais diferentes. As frases emitidas por uma patroa serão muito mais ouvidas do que as da empregada doméstica. A versão da empresa que comete um crime ambiental, geralmente é a mais difundida do que a de quem sofreu com os danos. Assim como, um discurso sobre o Brasil geralmente será emitido a partir de lugares como Rio de Janeiro e São Paulo.

Logicamente que a explicação disso passa pela capacidade que têm determinadas pessoas, que estão em determinadas posições sociais ou regiões do Brasil e do mundo, de fazerem circular seus discursos. Entretanto, o que mais preocupa é o resultado de tudo isso: uma verdadeira injustiça cognitiva.

Isso significa dizer, por exemplo, que muito do Brasil que conhecemos, conhecemos pelos olhos de alguns que estão em determinados lugares específicos deste país. Seus olhares são fundamentais, mas não podem ser vistos como os únicos possíveis.

Quando falamos em injustiça, significa justamente dizer que o privilégio que alguns têm de falar e serem ouvidos pode, muitas vezes, colocar na sombra os dizeres de muitos outros. Quando atribuímos o adjetivo cognitivo à injustiça, como já fez Boaventura de Souza Santos em seus trabalhos, estamos dizendo que nosso conhecimento das coisas é produzido, em muito, a partir deste privilégio que alguns têm diante de outros, ou seja, que nossos pontos de vista, visões de mundo, sempre carregam a influência de lugares que conseguiram falar para o país ou para o mundo, em detrimento de lugares cujas interpretações sempre se circunscreveram a eles próprios.

As vezes muita gente inteligente e com a melhor das intenções, que está nos lugares em que um rumor é um anúncio, em que sussurros se ouvem como gritos, no afã de teorizar sobre isso ou aquilo, não apenas dá tom a debates que poderiam ter outras tonalidades, como sombreia totalmente caminhos interpretativos diversos, que poderiam fissurar as grades cognitivas que organizam nosso mundo acadêmico. Falar é sempre mais fácil que ouvir, e nessa era da reprodutibilidade do conhecimento, também é mais simples segurar com as duas mãos o privilégio de ser ouvido, que usá-lo para pluralizar vozes, expressões, conceitos e linguagens, fazendo desse privilégio um farol a iluminar vários caminhos além do seu.   

Parece mesmo que está passando da hora de subverter essa injustiça, de começar a ouvir lugares até então silenciados, sujeitos até então esquecidos, vozes que alargariam nossa sensibilidade para com o mundo. O privilégio que alguns sempre tiveram de serem ouvidos, moldou nossos gostos musicais, nossas escolhas literárias, os conceitos que usamos e até os currículos de nossas escolas e universidades. Sublevar-se contra esse estado de coisas não significa jogar no lixo os olhares e dizeres que nos formaram, mas reconhecer que o mundo é muito maior e mais diverso do que nos fizeram acreditar, até porque não existe um mundo no singular, existem mundos…

 

Bruno Cezar Malheiro

Doutor em Geografia pela UFF e professor do curso de Licenciatura em Educação do 

Campo da Universidade Federal do Sul e Sudeste do Pará (UNIFESSPA).

 

 

* Fotografia: "Fé na Vida”, Transamazônica (1996), de autoria de Luiz Braga, fotógrafo independente com realização de mais de 70 exposições entre individuais e coletivas no Brasil e no exterior.

 

Ficha bibliográfica:

MALHEIRO, Bruno Cezar. De onde falo? Uma crônica-ensaio sobre geopolítica do conhecimento. Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.11, n.13, 31 de março de 2021. [ISSN 22380-5525].