E A BOIADA SEGUE PASSSANDO... - Fernando Bueno Oliveira
Fonte: https://www.greenpeace.org/static/planet4-brasil-stateless/2020/09/c0b8eb3d-dji_0987-1024x575.jpg
A leitura dos textos contidos no dossiê “O agro é fogo”[1] nos direciona para diferentes temáticas que se interligam por envolver a lógica de apropriação territorial. Abordam sobre as estratégias utilizadas por grandes fazendeiros para fins de posse e exploração de extensas áreas na Amazônia e no Cerrado.
Os seus textos foram produzidos por pesquisadores que atuam em estudos sobre desenvolvimento, agricultura, políticas públicas, sociedade e áreas afins e se baseiam em ricas fontes de dados documentais e cartográficos atualizados. Contribuem para o entendimento do que acontece hoje em termos de apropriação de terras especialmente em áreas de expansão de fronteiras agrícolas brasileiras. O dossiê é formado por seis textos compostos por mapas e fotografias. Diante do momento político atual que escancara as porteiras ao agronegócio e da necessidade de se compreender a atual dinâmica territorial que se baseia em interesses meramente capitalistas, a sua leitura é essencial, quase uma necessidade.
Adiante, apresentaremos o panorama dos textos do dossiê de forma a abordar os principais pontos neles tratados, ao mesmo tempo considerando a qualidade de suas informações que lhes dão credibilidade e os deixam bastante atuais.
Os autores do texto “a boiada está passando: desmatar para grilar”, ao tecerem considerações sobre os sentidos do uso do fogo, reforçam que ele é um elemento da natureza manejado com sabedoria por povos indígenas e comunidades tradicionais há séculos. Seus usos tradicionais são realizados de forma cuidadosa, em pequenas porções de terra e na estação adequada, como parte do manejo de longo prazo da paisagem agroflorestal. Entretanto, o fogo é utilizado na cadeia da grilagem-agronegócio e está, direta ou indiretamente, associado ao desmatamento que acompanha a expansão da fronteira agrícola.
O fogo – associado ao desmatamento – é usado para atingir áreas protegidas, tais como as Terras Indígenas, Territórios Quilombolas e de outras comunidades tradicionais, Reservas Extrativistas e Assentamentos de Reforma Agrária, como forma de ameaçar estas populações e se apropriar de suas terras.
Tanto o bioma Cerrado quanto a Amazônia foram sendo apropriados com intenções meramente voltadas ao agronegócio. As rodovias que conectam o Brasil Central à Amazônia acabam sendo eixos centrais desse movimento de apropriação, formando-se o arco do desmatamento na Amazônia.
Diante do intenso processo de ocupação de extensas áreas, a transição Cerrado-Amazônia acaba sendo a região de maior intensidade de conflitos no campo no país. Áreas do Cerrado e da Amazônia vêm sendo devastadas para dar lugar a campos de soja. As atividades relacionadas ao agronegócio são extremamente intensivas em terra e água, além de promoverem concentração fundiária e injustiças ambientais.
As extensas propriedades rurais que ali se formam, em grande parte dos casos, passaram em algum momento por procedimentos de grilagem para dar aparência de legalidade aos seus registros. Desde 1946, há um limite de 10.000 hectares para transferência de terras públicas para um único particular, o que torna inexplicável do ponto de vista legal a existência de latifúndios de dezenas e até centenas de milhares de hectares de áreas do Cerrado nos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia (MATOPIBA) e na Amazônia Legal.
A grilagem de terras consiste, grosso modo, em duas fases, que se alimentam mutuamente: a apropriação da terra “no chão” (a invasão e o controle ilegais de terras públicas) e a atribuição de aparência de legalidade “no papel” (a parte burocrática).
A derrubada da floresta ou vegetação nativa na terra apropriada é tida, em primeiro lugar, como o principal instrumento de consolidação da invasão e, em segundo, como um facilitador para o posterior processo de “esquentar” a terra nos cartórios, uma vez que o próprio crime ambiental é também passível de ser entendido como prova de ocupação da terra.
O desmatamento e as queimadas, sejam as ilegais ou as autorizadas pelos órgãos ambientais em frágeis processos de vistoria e análise de documentos, são a principal forma de consolidar a grilagem de terras, com a efetiva tomada de posse sobre os imóveis adquiridos que ainda possuam vegetação nativa, incrementando o preço da terra e intensificando a especulação imobiliária, que antecede a conversão das áreas para produção de grãos.
Dois dos maiores compradores estrangeiros de terras agrícolas no Brasil – os fundos de pensão da TIAA-CREF (Teachers Insurance and Annuity Association of America – College Retirement Equities Fund) e o fundo de investimentos da Universidade de Harvard (Havard Management Co.) – adquiriram ilegalmente centenas de milhares de hectares de terras agrícolas no Cerrado brasileiro.
De acordo com o texto “Ligações perigosas: fundos de pensão internacionais, incêndios e grilagens no Matopiba” esses fundos acumularam, desde 2008, cerca de 750.000 hectares no país, com seus negócios de terras agrícolas ligados à apropriação ilegal de terras, à expulsão violenta de comunidades tradicionais e rurais, ao desmatamento, incêndios e outros danos sociais e ambientais na região.
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) constatou que as aquisições de terras da TIAA foram baseadas em esquemas de grilagem de terras comumente utilizados na região, por meio da apropriação ilegal de terras públicas e posterior reivindicação fraudulenta de sua titularidade legal. O Instituto declarou que este era um motivo adicional para a anulação dos títulos de terras de TIAA.
Em “Presidência e parlamento a serviço dos grileiros: legislar para grilar”, reforça-se a ideia de que o regime jurídico da propriedade privada tem seu significado e abrangência redefinidos para cumprir com o seu papel de despossessão dos povos e captura dos comuns em exclusão das presentes e futuras gerações.
A realidade é que se formos aprofundar a análise dos títulos das grandes propriedades de terras no Brasil, na imensa maioria das vezes, encontraremos vícios que nos remetem à ação orquestrada dos setores públicos e privados para a apropriação privada e ilegal de terras públicas. A história de apropriação ilegal da terra também se confunde com a própria apropriação e restrição do espaço público por grupos de poder em gabinetes fechados.
A partir da década de 1960 sucessivas legislações têm sido gestadas a fim de tentar convalidar títulos irregulares, facilitar a “criação” de novos títulos ou de fomentar a implementação de políticas que promovem a conversão de terras públicas – ou de comunidades tradicionais – em terras privadas. Em 2009 foi editada a Lei 11.952, também conhecida como “Lei da Grilagem”, que criou o Programa Terra Legal, acelerando a regularização de ocupações irregulares ainda mais recentes na Amazônia Legal de até 1.500 hectares. Em 2012 foi publicado o Novo Código Florestal, que regularizou ambientalmente os imóveis rurais a partir da anistia ou perdão aos infratores ambientais, desobrigados de recompor a Reserva Legal e Área de Preservação Permanente (APP), como também acabou por autorizar a legalização de novos desmatamentos para o processo de expansão das fronteiras agrícolas.
As diversas alterações legislativas apresentadas na linha do tempo a partir de 2016 indicam uma verdadeira ofensiva voltada para a apropriação privada de terras e da natureza e para a garantia de segurança jurídica aos proprietários de terras, produtores rurais e investidores.
No texto “O agronegócio e o Estado brasileiro: quem lucra quando a boiada passa”, apresenta-se a dinâmica do agronegócio em que o lado “agrícola” perde importância e o lado “industrial” é abordado tendo como referência não a unidade industrial local, mas o conjunto de atividades do grupo que a controla e suas formas de gerenciamento.
As dinâmicas nos territórios tornam-se, assim, altamente conectadas com os mercados futuros agrícolas (Bolsa de Chicago) e são impulsionadas por redes opacas de atores que articulam agentes e operadores dos territórios, elites locais e grandes corporações e fundos de investimentos internacionais. O agronegócio pode ser visto como um pacto de economia política que conjuga a valorização da terra, a grande propriedade e o avanço do agronegócio, com grande apoio do Estado.
A articulação dos interesses do agronegócio e dos grandes produtores com o Estado se dá por vários meios, mas tem na Frente Parlamentar da Agropecuária (ou a bancada ruralista), que opera desde 1995, um espaço privilegiado. A bancada é financiada por 38 associações do agronegócio, que concentram grandes grupos empresariais nacionais e internacionais incluindo traders, empresas de tecnologia, empresas processadoras e bancos.
Há a preocupação permanente do agronegócio em reposicionar sua imagem na sociedade a partir do fortalecimento de uma narrativa unificadora que enaltece suas contribuições econômicas (sobretudo, a garantia da segurança alimentar), sociais e ambientais. Estabelecimentos de menores dimensões e da chamada agricultura familiar seguem desempenhando um papel importante na produção de alimentos para os mercados rurais e urbanos, além de contribuírem com a manutenção do tecido social nas áreas rurais e com o resgate e conservação de tradições e culturas alimentares mais diversificadas.
A “passagem da boiada”, com a redução nas políticas de controle e monitoramento do desmatamento combinada com a flexibilização da legislação ambiental, com o esvaziamento e a deslegitimação de agências ambientais, é um capítulo importante dessas transformações recentes.
Os autores de “trabalho escravo, expropriação e degradação ambiental: uma conexão visceral”, demonstram que a extração seletiva de madeira – aquela que escolhe as árvores de valor e não deixa manchas de desmatamento detectáveis via satélite – acontece em unidades de conservação (UCs) ou terras indígenas (TIs) com a exploração de trabalhadores escravizados. Para “lavar” a madeira e criar ar de legalidade, as toras de árvores são “esquentadas” em projetos de assentamento, áreas na região que podem ter planos de manejo legalizados.
Um poder paralelo é criado. Em função do abandono das áreas pelo Incra, assentados também acabam dependendo do trabalho oferecido pelos mesmos madeireiros, inclusive em situação de escravidão. A privação de seus territórios e de seus meios de vida faz com que essas populações sejam obrigadas a migrar em busca de trabalho para sobreviver, ou tenham de ir para as pontas de ruas nos municípios vizinhos, tornando-se extremamente vulneráveis ao aliciamento para o trabalho escravo. Assim, acabam se submetendo a trabalhos cada vez mais precarizados, muitas vezes em condições degradantes, de servidão por dívidas ou, até, de extrema violência física.
Mesmo diante das investidas do agronegócio e do mercado de terras com a finalidade única de abocanhar terras e reproduzir o grande capital, permanências, resistências e (re)existências ainda permeiam o modo de vida da população tradicional. O texto “saberes que vêm de longe: usos tradicionais do fogo no Cerrado e Amazônia” trata do conhecimento que essa população adquire e aplica em seu território. Os povos indígenas e as comunidades tradicionais ao mesmo tempo, promovem a conservação e o incremento da biodiversidade que manejam. Assim, constroem territórios sustentáveis que se mantêm vivos e produtivos ao longo do tempo.
Existe uma grande diversidade de “roças de toco”, com cada ecossistema possibilitando um tipo de roça com características específicas, que recebem diferentes denominações locais. Porém, todas as variações de roças de toco compartilham a feição de serem uma prática itinerante, de movimento. A destinação das áreas das roças para o pousio possibilita que o ecossistema seja manejado de forma lenta e gradual, o que é determinado por suas próprias respostas naturais. Portanto, está diretamente ligado ao uso do território pelas comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas. Se o território é fragmentado, a realização de práticas tradicionais de manejo da paisagem fica comprometida.
Após a fase da queimada, os agricultores plantam mandioca e outros cultivos que são cuidados conforme as suas necessidades específicas. As áreas de roça geralmente são utilizadas por dois a quatro anos, retornando depois ao pousio. Alternativamente, estas áreas podem ser continuamente manejadas, tornando-se sistemas agroflorestais mais permanentes, contribuindo para uma paisagem dinâmica e diversificada.
A boiada vai passando, entretanto, é preciso ressaltar que diante da poeira que sobe populações resistem. O que elas querem é tão somente a garantia da posse e uso de seus territórios a que têm direito. De fato, é animadora a ideia de que um dia a poeira abaixe e a situação de populações tradicionais e camponeses passe a melhorar. Mas a poeira pode demorar a passar! Diante disso, movimentos e organizações sociais que defendem a democratização da terra e a reparação de injustiças sociais sobre os trabalhadores do campo têm resistido aos ditames de um governo que privilegia o agronegócio e subordina o campesinato.
Referências:
AGUIAR, Diana.; TORRES, Maurício. A boiada está passando: desmatar para grilar. In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/a-boiada-esta-passando-desmatar-para-grilar/ Acesso em 28 de julho de 2021.
AATR Bahia. Ligações periogosas: fundos de pensão internacionais, incêndios e grilagens no Matopiba. In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/ligacoes-perigosas-fundos-de-pensao-internacionais-queimadas-e-grilagens-no-matopiba/ Acesso em 28 de julho de 2021.
BONFIM, Joice; Packer, Larissa. Presidência e parlamento a serviço dos grileiros: legislar para grilar. In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/presidencia-e-parlamento-a-servico-dos-grileiros-legislar-para-grilar/ Acesso em 30 de julho de 2021.
KATO, Karina. O agronegócio e o Estado brasileiro: quem lucra quando a boiada passa? In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/o-agronegocio-e-o-estado-brasileiro-quem-lucra-quando-a-boiada-passa/ Acesso em 30 de julho de 2021.
MOTOKI, Carolina; PEREZ, Ginno. Trabalho escravo, expropriação e degradação ambiental: uma conexão visceral. In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/trabalho-escravo-expropriacao-e-degradacao-ambiental-uma-conexao-visceral/ Acesso em 29 de julho de 2021.
STEWARD, Ângela May, et. all. Saberes que vêm de longe: usos tradicionais do fogo no Cerrado e Amazônia. In: agro é fogo. Disponível em: https://agroefogo.org.br/saberes-que-vem-de-longe-usos-tradicionais-do-fogo-no-cerrado-e-amazonia/ Acesso em 02 de agosto de 2021.
Fernando Bueno Oliveira
Doutorando em Geografia, IESA/UFG
[1] O dossiê de textos que abordam sobre devastação ambiental e conflitos por terra está disponível em https://agroefogo.org.br/. Acessado em 11 de agosto de 2021.
Ficha bibliográfica:
OLIVEIRA, Fernando Bueno. E a boiada segue passando... Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.11, n.13, 24 de setembro de 2021. [ISSN 22380-5525].