ESPAÇO E SOCIEDADE A PARTIR DA CONTRIBUIÇÃO DE KARL MARX - Nildo Viana
A teoria de Karl Marx nada tem a ver com a questão do espaço, pois ele não escreveu nada a este respeito. Esta afirmação é aparentemente correta. A grande questão é que Marx não escreveu nenhuma obra ou artigo direto sobre o conceito de espaço ou com o foco nessa questão, mas fez diversas análises da sociedade que a envolvem. Este é o nosso tema no presente artigo.
A concepção de Marx é reconhecidamente marcada pela historicidade. Ele analisou a história da humanidade e elaborou uma teoria da história. Esta é conhecida pela sucessão dos modos de produção. A ideia de especificidade histórica é outro elemento fundamental do seu pensamento (KORSCH, 1983). Se isto é reconhecido com relativa facilidade e consenso, o mesmo não ocorre com a questão espacial. Contudo, a obra de Marx também aponta para uma percepção do espaço. Essa percepção do espaço, por sua vez, está indissoluvelmente ligada ao social e ao histórico. Um determinado espaço é uma forma de manifestação de determinadas relações sociais inscritas numa região, território, etc. Sem dúvida, ele não fez tal afirmação, mas ela pode ser deduzida da forma como ele trabalha a questão do espaço. É por isso que vamos discutir, inicialmente, a sua análise do espaço no processo de desenvolvimento histórico da humanidade e, posteriormente, no caso da sociedade capitalista.
Quando Marx analisa a passagem das sociedades sem classes para a sociedade de classes, ele observa um processo de ampliação da divisão social do trabalho que mantém íntima relação com uma divisão espacial da sociedade. É nesse contexto que ele observa a oposição cidade e campo (MARX e ENGELS, 2002), produto da expansão da divisão social do trabalho, que gera, por sua vez, uma divisão espacial. Mas, além desta questão das origens, há também a circunscrição histórica de determinadas sociedades em determinadas regiões. É por isso que ele poderá constituir os conceitos de modo de produção asiático e modo de produção germânico (MARX, 1985). O modo de produção asiático é circunscrito a uma determinada região, tal como o modo de produção germânico. Obviamente que os dois termos são problemáticos, pois não é a questão da região que caracteriza esses modos de produção (embora tenham impacto sobre ele, tal como a questão da irrigação no modo de produção asiático), mas isso se deve ao fato de que ele não elaborou uma teoria desenvolvida de tais modos de produção, sendo que sua análise incidiu mais sobre o caso dos modos de produção existentes na Europa Ocidental.
A deformação do pensamento de Marx, que foi apresentado como sendo constituído por uma concepção positivista de leis da história, que era marcado pela sucessão necessária de quatro modos de produção é um obstáculo a ser superado para se compreender seu método e concepção da realidade, como algo concreto e não como a mera manifestação de leis sociais. Sem dúvida, ele aborda a sucessão do modo de produção asiático, antigo, feudal e burguês no Prefácio de Contribuição à Crítica da Economia Política (MARX, 1983), mas essa exposição, “em traços gerais”, não é a apresentação de uma evolução geral da humanidade. Nesse texto ele não apresenta as comunidades primitivas que antecedem esses modos de produção que já constituem classes sociais, são modos de produção de sociedades classistas.
Nos Grundrisse (MARX, 2011), os esboços de O Capital (MARX, 1988), no capítulo que foi posteriormente publicado sob o título de Formações Econômicas Pré-Capitalistas (MARX, 1985), ele analisa de forma mais profunda que em A Ideologia Alemã (MARX e ENGELS, 2002), o desenvolvimento de outros modos de produção além dos clássicos da Europa Ocidental (escravismo, feudalismo e capitalismo). O modo de produção asiático, bem como o “germânico”, são modos de produção classistas, apesar da polêmica em torno disto, pois já constituem e produção e apropriação de um excedente, ou seja, relações de exploração. Porém, o que nos interessa aqui é reafirmar a relação entre espaço e sociedade. Estes modos de produção existiram em determinadas regiões, constituindo determinadas formas de sociedade e uma determinada organização espacial. Claro que, posteriormente, alguns historiadores identificaram a existência de um modo de produção asiático fora da região originária, o que, no entanto, significa apenas que o nome “asiático” é impreciso e que formas análogas surgiram em outras regiões (tal como alguns afirmam ter existido no continente americano). Em outras palavras, um modo de produção e uma forma de sociedade correspondente são históricos e se organizam num determinado espaço territorial, instituindo relações específicas derivadas dos processos sociais e sofrendo influências, cuja intensidade e forma dependem tanto das relações sociais quanto do meio ambiente local.
Contudo, a relação entre espaço e sociedade ganha maior concretude e profundidade na análise de Marx quando se trata da sociedade capitalista. A análise que Marx faz da ascensão e desenvolvimento do modo de produção capitalista aponta para o seu processo de contínua expansão espacial e transformação do espaço. Desde o renascimento das cidades e redefinição do espaço com a constituição paulatina de um espaço urbano, a expulsão dos camponeses de suas terras e a reconfiguração do espaço rural, passando pela análise da acumulação primitiva de capital e transformações espaciais derivadas, inclusive pelo processo imposto pelo Estado absolutista e sistema colonial (Marx, 1988b), até a constituição da nova paisagem urbana com a revolução industrial e consolidação da acumulação capitalista propriamente dita e sua repercussão espacial internacional, Marx faz um conjunto de análises que mostram a íntima relação entre capital, estado capitalista, luta de classes e reconstituição do espaço.
Nesse sentido, a análise do modo de produção capitalista por Marx é fundamental para compreender as mutações no espaço urbano, rural e internacional. Os seus artigos sobre colonialismo (MARX e ENGELS, 1978) apontam para a percepção de que a configuração do espaço é algo constituído socialmente e, na sociedade capitalista, o movimento do capital, a ação estatal, as lutas de classes, a luta operária, são fundamentais para compreender este processo. Sem dúvida, não somente o que ele escreveu efetivamente sobre as transformações sociais, bem como sobre as mudanças espaciais que lhes acompanham, mas dois outros elementos de sua obra são fundamentais para uma análise do espaço na sociedade moderna: a sua teoria do capitalismo e o método dialético.
O método dialético é essencial para a percepção de que o espaço deve ser analisado não como “coisa”, no sentido durkheimiano (Durkheim, 2008), concepção metafísica, e nem sob a forma empiricista. O fetichismo do espaço consiste em dar vida a ele, pensar que ele age por conta própria, que tem vida própria. Uma abordagem durkheimiana desembocaria nisso, mas mesmo alguns supostamente marxistas acabam gestando ideologias análogas (VIANA, 2002). O espaço não tem vida própria. Sem dúvida, existe o meio ambiente e suas características, possibilidades, resistências a determinadas ações humanas. É possível dizer que o meio ambiente (e não algo abstrato como “o espaço”) é uma das determinações da constituição do espaço humano, social. A concepção empiricista, por sua vez, também é totalmente desprovida de condições de explicar o espaço, pois isola o mesmo, perde de vista sua historicidade (seu processo de constituição social). O método dialético aponta para uma teoria da realidade que compreende a mesma como sendo algo concreto, inserido numa totalidade e sendo produto de uma constituição histórica. No caso espaço, habitado por seres humanos, é um espaço constituído socialmente, inserido na totalidade das relações sociais que geram determinada configuração espacial, e que teve um processo histórico de constituição e mutação. Uma vez constituído qualquer espaço social (urbano, rural, etc.), ele, obviamente, produz limites, assume formas, que muitas vezes são herdadas das gerações atuais pelas gerações anteriores. O espaço não ganha vida própria, é apenas a reprodução de relações sociais anteriores e que persistem em existir e possuem raízes fortes e sustentáculos que dificultam sua superação[1].
E é nesse momento que ganha importância a teoria do capitalismo de Marx, outra contribuição indireta deste autor para se compreender a relação entre espaço e sociedade no capitalismo. A organização espacial na sociedade capitalista reproduz a organização social, a divisão social do trabalho. A divisão social do trabalho gera uma divisão espacial do trabalho. No entanto, isso não é estático, muda historicamente e pode realizar fusões e processos híbridos. A luta de classes é o conceito fundamental para se explicar tal processo de constituição social do espaço no capitalismo. A essência do capitalista está na produção de mais-valor, que expressa uma relação de exploração e dominação que ocorre no processo de trabalho e produção, que tem um forte impacto sobre a organização espacial de uma cidade e, de forma derivada, da sociedade como um todo. A produção industrial não é implantada em qualquer lugar e onde ela se instala interfere em outras relações sociais e no espaço social. O impacto dos centros industriais é muito mais forte do que o de indústrias isoladas, mas mesmo no caso destas últimas não é possível pensar que não. O impacto abrange transporte coletivo, poluição, comércio, serviços e cria diversas necessidades que terão que ser satisfeitas, tais como formação da força de trabalho, meios de consumo, etc. Ela também gera espaços de resistência, de luta, bem como de conciliação e distração, tais como as várias formas de organização dos trabalhadores (sindicatos, clubes, etc.), serviços de assistência, locais e momentos de mobilização, etc. Contudo, isso é apenas um elemento aparente de todo o processo, pois a produção de mais-valor não somente cria luta e necessidades derivadas delas (aparato jurídico e repressivo, por exemplo), mas para além dos muros das fábricas, cria a necessidade de realização do mais-valor, as relações de distribuição, circulação e o comércio. Aqui se envolvem inúmeras outras relações sociais, que não poderemos citar. O Estado capitalista é o responsável por organizar o espaço tanto no sentido de permitir a reprodução das relações de produção capitalistas como de impedir a transformação social. A Comuna de Paris produziu mutações no espaço urbano para evitar o ressurgimento de experiências semelhantes (ENGELS, 1986).
No entanto, as lutas de classes não se dão apenas devido ao processo de dominação e exploração no processo de trabalho, elas se reproduzem na instância da repartição do mais-valor, nas relações de distribuição e circulação. A aquisição de meios de consumo, mais ou menos possível para certos setores da sociedade, sob formas e graus variáveis, são fontes de conflitos, bem como os serviços e o papel do Estado na repartição do mais-valor, geralmente beneficiando o capital, os capitalistas e os burocratas. Outras classes entram na luta: lumpemproletariado, camponeses, intelectuais, trabalhadores domésticos, etc. A própria organização espacial e o processo de segregação cria novos conflitos e diversos agentes: o capital imobiliário e a especulação, o governo, desabrigados, moradores das periferias, etc.
Contudo, as relações de produção capitalistas geram um processo de reprodução ampliada do capital, acumulação crescente, concentração e centralização. Isso provoca disparidades espaciais nacionais, regionais, locais. Isso produz o crescimento urbano e diversos outros problemas. Em síntese, trata-se de um conjunto diverso e complexo de relações sociais entrelaçadas que afetam o espaço, que lhe dão uma configuração e criam conflitos e lutas, mais materiais para ação estatal, intervenção espacial. Mas este é um processo permanente do capitalismo e não se pode esquecer a historicidade e deixar de ver que ele só se reproduz se ampliando e o faz isso através de mutações.
O modo de produção capitalista muda e isso cria alterações na organização espacial. Sem dúvida, apesar de Marx ter realizado uma abordagem histórica da constituição e evolução inicial do capitalismo, não pôde analisar a sua evolução posterior ao século 19 e, nesse caso, cabe ampliar a teoria do capitalismo para observar seu desenvolvimento histórico. A teoria dos regimes de acumulação aponta para uma percepção desse desenvolvimento histórico com base na teoria do capitalismo de Marx (VIANA, 2003; VIANA, 2009), o que, no entanto, ultrapassa os limites da presente discussão. Cabe apenas observar que os sucessivos regimes de acumulação constituem alterações espaciais a nível internacional, nacional, regional e local, atingindo a vida cotidiana das pessoas, tal como no caso do regime de acumulação integral, o atual regime de acumulação, que aumenta a pobreza, a violência, etc., devido sua busca de aumentar o processo de exploração de forma geral, gerando novos fenômenos espaciais, tais como a criação dos condomínios fechados, convivendo com a “favelização” da sociedade (DAVIS, 2006), para citar apenas dois exemplos.
Em síntese, a contribuição de Karl Marx para pensar as relações entre espaço e sociedade abrange um conjunto complexo de temas e problemas que podemos apenas elencar seus principais aspectos. Nessa contribuição se insere não somente as referências diretas de Marx ao processo de relação entre espaço e sociedade, mas também sua contribuição teórica e metodológica, bem como é necessário acrescentar os desdobramentos possíveis posteriores realizados por outros. O conjunto da obra de Marx oferece um rico material sobre a questão da relação entre espaço e sociedade, que está disperso num conjunto de textos e trechos de obras, que ainda não ganharam uma coletânea como já ganhou seus escritos esparsos sobre educação, arte e diversos outros fenômenos sociais. Quando esse trabalho for realizado, os estudos sobre sua contribuição direta serão ampliados e facilitados. A sua contribuição metodológica é fundamental e abre amplas perspectivas analíticas ainda não inteiramente desenvolvidas, em parte pelo processo histórico de empobrecimento e deformação do método dialético, desde o início do século 20. Nesse sentido, o resgate do autêntico método dialético que vem se realizando, seja retomando as obras de Marx ou de outros que buscaram recuperá-lo das concepções deformadoras, tal como Karl Korsch (1977; 1983), para citar apenas um exemplo, também faz parte de um processo de reconhecimento desta contribuição. A sua contribuição teórica com sua análise do modo de produção capitalista segue a mesma lógica e dinâmica de sua contribuição metodológica e a releitura de Marx e daqueles que resgataram sua concepção também é fundamental. Por fim, é necessário abandonar as leituras dogmáticas, tal como Korsch já havia exigido, e reconhecer que o conjunto da contribuição de Marx é não só fundamental, mas que deve ser vista criticamente e inserida no contexto social e histórico em que foi produzida, bem como a percepção de que a história não parou e ele não disse tudo, o que significa a necessidade de atualizar, desenvolver, avançar, aprofundar, o conjunto de tal contribuição, inclusive analisando as mutações ocorridas graças ao desenvolvimento histórico do capitalismo. Contudo, a percepção da historicidade já estava nas obras do próprio Marx. Assim, o fundamental é manter a essência da contribuição de Marx: analisar a realidade de forma crítica e revolucionária, desfazendo todas as ilusões e naturalizações para contribuir com a constituição do novo.
Referências
DAVIS, Mike. O Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
DURKHEIM, Émile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
ENGELS, Friedrich. Prefácio. In: MARX, Karl. As Lutas de Classes na França. São Paulo: Global, 1986.
KORSCH, Karl. Karl Marx. Barcelona, Ariel, 1983.
KORSCH, Karl. Marxismo e Filosofia. Porto: Afrontamento, 1977.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã (Feuerbach). São Paulo, Hucitec, 2002.
MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Sobre o Colonialismo. Lisboa: Estampa, 1978.
MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. São Paulo, Martins Fontes, 1983.
MARX, Karl. Formações Econômicas Pré-Capitalistas. 4ª edição, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 1, 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988a.
MARX, Karl. O Capital. Vol. 3, 3ª edição, São Paulo, Nova Cultural, 1988b.
VIANA, Nildo. Estado, Democracia e Cidadania. A Dinâmica da Política Institucional no Capitalismo. Rio de Janeiro: Achiamé, 2003.
VIANA, Nildo. O Capitalismo na Era da Acumulação Integral. São Paulo: Ideias e Letras, 2009.
VIANA, Nildo. Violência Urbana: A Cidade como Espaço Gerador de Violência. Goiânia, Edições Germinal, 2002.
Nildo Viana
Professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás
Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília.
E-mail: nildo@nildoviana.com
[1] Obviamente que aqui também entra em questão a teoria da consciência que está nas bases do método dialético. As representações, verdadeiras ou ilusórias, são constituídas socialmente, bem como as ideologias e teorias, e todas elas remetem ao problema da constituição social das ideias e seu vínculos com valores, sentimentos, interesses, que são constituídos socialmente e manifestam a posição do indivíduo na sociedade, seu pertencimento de classe e outras determinações existentes. Assim, tanto para a autoanálise (das possibilidades e formas de utilização do método dialético) quanto para a análise das formas de consciência sobre o espaço (tanto as representações cotidianas, ilusórias ou verdadeiras, quanto as ideologias e teorias), é fundamental essa percepção de que entre o real e a representação do real há a mediação do ser que realiza a representação, o ser consciente, que é o que constitui determinada consciência.
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Ficha bibliográfica:
VIANA, Nildo. Espaço e sociedade a partir da contribuição de Karl Marx. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n 4, 10 de março de 2013. [ISSN 22380-5525].