EU SOU O BURITI DA VEREDA - Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado
Vereda de buritis em Mestre D’Armas (Planaltina), 1935 (Acervo de Bento Fleury)
Dilui-me na paisagem, pois andei cansado.
Caminhei por estradas tantas e me repousei na vereda
Abri longas raízes no chão, de repente, nasci,
Agora sou um frondoso buriti.
Nem mesmo sou o poético buriti perdido, de Afonso Arinos,
O buriti sussurrante, de Leo Lynce,
O buriti do sereno, de Armênia de Souza,
Não, apenas um buriti plantado na terra molhada da vereda.
E as minhas palavras saem pelas folhas, pulsam,
Frenéticas e frementes, eloquentes e esverdeadas.
Tenho o contato agora com o verbo iniciático
Em voz, em flor, sou um verso muito antigo.
Eu sou desse tempo, pois, que as folhas falavam,
E abraçavam em imensos braços vegetais.
E agora – buriti – vejo a falsa civilização
Pois sou ação, elemento telúrico e desmanchado.
Sou perto de quem me criou e me manteve – estranho
Sinto da terra uma força em essência – proteção.
Elemento que veio de abismos encobertos
Do âmago do mundo desconhecido e perfeito.
Agora eu vi, com olhos cascudos de buriti!
Nesse poema cantam meus passarinhos.
Eles escutam o murmurejo dos leques de minhas folhas.
Sons inaudíveis, mas tão possíveis em tantos mundos,
Na comunhão que vem até das pedras antigas e caladas – tão duras!
Há um tempo ausente nas modificações possíveis
No tempo ocluso das coisas impossíveis – sei lá, sou buriti!
Meu tempo agora é tenro e macio
E me ergo altaneiro balançante para a luta – guerreiro!
Esses homens, eu os vejo da minha altura,
Na cobertura tão bela de meu arbóreo manto.
Vejo-os, mas prefiro as quaresmeiras, os calangos,
E os horizontes que se alongam nesse planalto incessante.
Vejo os homens daqui dessa altura em que cores se misturam.
Observo-os com suas maquininhas ingênuas e fedorentas
Correndo a planície desse chão, sem ver as minúsculas florzinhas,
Que se derramam pelo caminho, tão sem pressa!
Apressados, lépidos, apressados ainda, zonzos,
Vão e vêm pela planície, arquitetando o tempo que não possuem;
Esses homens correm tanto, esbaforidos e a pedra me diz, na calada mudez,
Que caminham pressurosos para a sepultura.
Ouço crescer o cerne, a rigidez, a envergadura. Ouço o estralar.
Estralo em ternura de verso ao fazer esse verde poema
Inventário das raízes que cresceram vigorosas
E busco a noite carregada de luzes sobre minhas folhas.
Meus olhos cascudos não se cansam de contemplar o mundo
No frescor dessa vereda com meus amigos, balançantes ao vento.
Há cores no longínquo. Ternuras de brisas
Acalanto de amanheceres.
Minha sombra se debruça sobre a vereda
Uma mina cantante corre entre nossas raízes
Levando a música perene para outras paragens
Em vidas sucessivas de evoluir.
Vejo miudezas de um mundo de espantar
Joaninhas faceiras levando recados, jaós cantantes,
Formigas diligentes, o pranto doloroso dos inhambus,
Marias fedidas, com suas catinguinhas no mato.
Vejo dentre esses seres pequeninos os homens
Turbulentos; não se entendem como as formigas,
Alastram-se em ódios, se entredevoram
Não possuem a fluidez do lambari do rio.
Se eu não fosse buriti eu seria um lambari!
Não só pela rima,
Mas pelo brilho e pela alegria
Nas águas dos remansos e dos corguinhos.
Não entendem esses homens o processo das formigas
A indústria engenhosa das abelhas com seus prismas hexagonais
Na geometria certinha dos favos, sem erro,
E nunca estudaram matemática essas doutas operárias.
Nem mesmo os homens tão pequenos que vejo
Entendem as aranhas com suas teias nos caminhos
Como profissionais de levezas pênseis e transparentes
No esforço inicial que nasce só nas coisas simples.
Nem mesmo esses tolos observam as figurações de equilíbrio das plantas
Que se movem com sentido e significado.
Há perfeições de nervuras nas folhas
Como uma palma, um limbo, uma mão aberta, esperando.
As folhas são feitas para recolher os toques das auroras!
Nas folhas de todas as plantas,
Deus desenhou belas formas abstratas
Singelas molduras que carregam séculos
De profunda significação!
Nem mesmo os tolos seres humanos entenderam que a árvore
Fez no chão um ninho de raízes escondidas
Que sustentam colunas perfeitas, estirpes,
Afeitas aos ventos e aos perigos.
Até mesmo conquistar o voo esses tolos ousaram,
Sem a leveza despreocupada dos passarinhos.
Não notaram a fluidez das aves, o descontínuo, o não tempo
Apenas emergiram da catástrofe do chão. Apenas.
Que pena!
Assim no meu mundo buriti, vejo o esboroar de um plano!
Morrerão por completo os homens
Antes das formigas, das aranhas, das curicacas, das Marias fedidas.
Fenecerão antes das aves migradoras, tão niveladas
E antes dos lambaris prateados dos corguinhos, seus mundinhos pequeninos.
Não terão visto o sol como vejo na perspectiva de minha vereda!
E nem sentirão luares derramados em cores dúbias em cada noite.
Lembrando antigos amores desbotados
Nem verão folhas caindo de mansinho com pena de acabar
O mundo sem pressa no calado das sábias pedras tão imóveis.
Eu sou o buriti da vereda
Depois de mim o que restar, não resta, não muda,
Pedaços de profunda solidão desses homens
Com suas maquininhas catingudas.
No leque de minhas folhas ao sabor dos ventos
O cântico ancestral tecido com meus parceiros da vereda.
Cantarei tempo sem tempo, sem medo tempo,
Cada vivo morre uma parte da morte de cada outro.
Meus olhos são cascudos.
Do alto de meu mundo buriti
Compreendi
Esverdear o tempo na viração das folhas.
E que agora sei
É que sempre buriti serei!
Bento Alves Araújo Jayme Fleury Curado
bentofleury@hotmail.com