GEOGRAFIA? GEOGRAFIAS? - Weder David de Freitas

25/08/2013 12:00

 

Se não pelo que alguns geógrafos afirmam explicitamente, mas pelo que muitos praticam, a geografia é o que faz cada qual e assim há tantas geografias quanto geógrafos. Desse modo, à pergunta “o que é geografia”, e a pretexto de liberdade, a resposta acaba por constituir um exercício de fuga. (Santos, 2006, p. 18)

 

A provocação da epígrafe nos remete a questões que balizam a formação e consolidação da Geografia enquanto ciência moderna. A Geografia é a ciência dos lugares e não dos homens, como já disse certa vez La Blache? Ela deve realizar estudos gerais ou particulares, na velha dicotomia ideográfico/nomotética? A sua singularidade se dá pelo objeto, o espaço, ou pelo método? É necessário que se atenda o mercado, através das suas ferramentas ou que combatemos as injustiças sociais provocadas pelas mazelas do capitalismo? Afinal, devemos encará-la como uma ciência que consegue dar respostas as questões pertinentes, até mesmo com clarividência, ou apenas realizar minuciosas descrições – utilizando para isso as categorias região, paisagem, lugar, território, rede e outras? O fato é que essas discussões, além de outras, que habitam o corpus geográfico no seu presente, já esteve no seu passado e com alguma certeza estará no seu futuro.

Pois bem, para entrar no debate e encarar todas as indagações existentes a respeito do tema devemos levantar alguns pressupostos. O primeiro é encarar o fato, dolorido para algumas pessoas, da limitação da Geografia. Assim como as demais ciências do modelo cartesiano, ela não consegue dar respostas a todas as questões levantadas pela sociedade, seja no campo natural (físico) ou social (humano). O segundo pressuposto é perceber que a teoria/prática da Geografia se dá em espaços e tempos diferentes, é importante compreender que ela é uma invenção de um tempo e por isso se transforma com o passar dos anos. O último pressuposto, de certa forma contemplado nos anteriores, nos remete a encarar os limites e as mutações de suas categorias fundantes. 

Para ser mais ilustrativo trazemos as justificativas de Josué de Castro quando escolhe a Geografia para o entendimento totalizante da fome, na tentativa de fugir de uma análise apenas especializada. Para ele,

Foi diante desta situação que resolvemos encarar o problema sob uma nova perspectiva, de um plano mais distante, donde se possa obter uma visão panorâmica de conjunto, visão em que alguns pequenos detalhes certamente se apagarão, mas na qual se destacarão de maneira compreensiva as ligações, as influências e as conexões dos múltiplos fatores que interferem nas manifestações do fenômeno. Para tal fim pretendemos lançar mão do método geográfico, no estudo do fenômeno da fome. Único método que, a nossa ver, permite estudar o problema em sua realidade total, sem arrebentar-lhe as raízes que o ligam subterraneamente a inúmeras outras manifestações econômicas e sociais da vida dos povos. Não o método descritivo da antiga geografia, mas o método interpretativo da moderna ciência geográfica, que se corporificou dentro dos pensamentos fecundos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blache, Criffith Taylor e tantos outros. (p. 24)

Já em 1946, data da primeira edição da Geografia da Fome, Josué de Castro nos dá pistas de como realizar um trabalho com características geográficas. Apesar de ser uma pesquisa com preocupação de entendimento da totalidade o autor utiliza a categoria região para subsidiar suas explicações – não aquele antigo método descritivo regional, mas a diferenciação delas. Aqui podemos identificar o primeiro pressuposto já apresentando, ou seja, a limitação. Apesar de perder as minúcias do fenômeno, ganha-se na visão totalizante. Portanto, a escala de análise é a compreensão da localização do fenômeno e de suas implicações.

Hoje essa concepção do fazer geográfico se modificou com o passar do tempo, bem como os conceitos atribuídos às suas categorias. Isso é explicável pelo segundo pressuposto, o mundo mudou e é necessário que as respostas sejam condizentes com a realidade, da mesma forma o real proporciona uma releitura da ciência. Moreira (2012) já identifica essa transformação nos trabalhos produzidos pela Geografia. Para ele até aproximadamente a década de 1950 a quase totalidade das pesquisas eram pautadas na categoria região, já que a interferência humana no ambiente ainda era pequena e as mudanças ocorridas naqueles espaços eram bem lentas, por isso a região daria conta de explicar os fenômenos por um período longo de tempo. A “substituição” da região pela rede só se concretiza quando as relações espaciais se consolidam em escala planetária, principalmente. Daí pode-se falar de um fenômeno até então novo, a globalização. A emergência da categoria lugar se dá justamente pela necessidade de consolidar aquelas culturas ameaçadas pelo processo global. Resumindo, as categorias se transformam – é estritamente necessário que se atualizem – para conseguir interpretar os fenômenos.

Qual seria o motivo, portanto, da utilização majoritária da categoria território atualmente? Os conflitos, indígenas, dos sem-terra, das comunidades tradicionais, ambientais, urbanos, agrários, regionais, geopolíticos pautam as pesquisas geográficas? A bola da vez é o planejamento estatal, empresarial? Há hoje uma banalização da categoria território? Essa categoria realmente dá conta de todas as demandas apresentadas pela sociedade? Já se fala em território cerradeiro, território do agronegócio, território rural etc. Essa categoria já foi reformulada para dar respostas relevantes ou ainda se pauta apenas naquela caracterização de Raffestin, onde território é pautado pelo poder?

Atualmente, parece haver algumas características no mundo e nas ciências que nos dão embasamento para um entendimento de uma pluralidade geográfica. A globalização através das três tendências constitutivas: unicidade da técnica; a convergência dos momentos; e uma mais-valia universal, conforme define Milton Santos (2003) possibilita troca de artigos, pesquisas, invenções, produzindo, nos dizeres de Silveira (2012) uma história universal concreta. Também produzindo uma ciência mundializada, ou seja, a circulação de conhecimento está causando transformações sem precedentes na história da humanidade. Há, portanto, em possibilidade, de produzirmos um conhecimento geral geográfico. Entretanto, existe um paradoxo,

[...] quando se tornou mais possível falar de uma geografia geral concreta, histórica, interdependente, de um planeta com uma base material e organizacional comum – desigual, seletiva, mas comum –, a disciplina se fragmenta em “n” especialidades ou aspectos, e os estudos do micro passam a reinar como positividade. O discurso sobre os lugares per se dá legitimidade científica à disciplina. Mas, quando a história concreta se torna interdependente, quando a história universal se geografiza, quando o planeta materialmente é a prova que a história é interdependente, a abstração reside exatamente no estudo do particular per se. É isso que é uma abstração, e não o estudo da totalidade. Esse é um grande dilema da disciplina hoje. (SILVEIRA, 2012, p. 212)

A fragmentação da disciplina parece que é uma tentativa de dar maior cientificidade a ela. Estamos indo, dessa forma, na contra mão do que nos é ofertado, promover estudos gerais e assim entendimentos holísticos. Por isso, separar a Geografia nas suas gavetas não contribuirá em nada para podermos avançar em atualizar nossas categorias e podermos assim colaborar com o desvelar do espaço contemporâneo.

É possível que a Geografia fale de índios, literatura, poluição sonora, política, movimentos sociais, migrações, meio ambiente, quilombolas, futebol, feira, energia, festas, congadas etc.? Sim, é possível, desde que se saiba de qual lugar está se falando - a sua referência científica. Parafraseando Chaveiro (2013) “ai daquele que tem um método ou uma filosofia como religião, pois fará sempre análises capengas. Mas também ai daquele que não tem um referencial teórico para se apoiar, pois se reduzirá a um pluralismo sem sentido”. Também, penso que: ai daquele que não sabe o lugar onde está, pois poderá realizar interpretações parciais e equivocadas.

 

Nota:

Este texto é fruto dos debates realizados no Grupo de estudos espaço, sujeito e existência. Também conhecido como “Dona Alzira”.

 

Referências

CASTRO, Josué de. Geografia da Fome. O dilema brasileiro: pão ou ação. Rio de Janeiro: Antares, 1984.

CHAVEIRO, Eguimar Felício. Arguição na defesa de doutorado de Sandro de Oliveira Safadi. Goiânia: IESA/UFG, 2012.

MOREIRA, Ruy. Geografia e práxis: a presença do espaço na teoria e na prática geográficas. São Paulo: Contexto, 2012.

SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 4. ed. 3. reimpr. São Paulo: EDUSP, 2006.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. 10 ed. Rio de Janeiro: Record: 2003.

SILVEIRA, María Laura. Geografia e mundo contemporâneo: pensando as perguntas significativas. Boletim Campineiro de Geografia, Campinas/SP, v. 2, n. 2, p. 205 – 219, 2012.

 

Weder David de Freitas

Professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Goiás – IFG – câmpus Goiânia.

Doutorado do Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás. Membro do grupo “Dona Alzira”.

wederfreitas@hotmail.com

 

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Ficha bibliográfica:
 
FREITAS, Weder David de. Geografia? Geografias? In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.3, n.5, 25 de agosto de 2013. [ISSN 22380-5525].