HISTÓRIA E LITERATURA: UM DIÁLOGO POSSÍVEL - Patrícia Martins Alves do Prado
Introdução
Desde a II guerra mundial os estudos históricos vêm passando por consideráveis transformações paradigmáticas na interpretação da realidade social e na investigação do passado: a tão propalada crise das macro-explicações da realidade trouxe nova efervescência na discussão acerca do oficio do historiador e uma renovação epistemológica. Assim, é necessário evidenciarmos o estatuto do texto histórico, enfatizando que este trabalho compartilha das concepções da história cultural. Para Pesavento:
[...] a História é uma espécie de ficção, ela é uma ficção controlada, e, sobretudo pelas fontes, que atrelam a criação do historiador aos traços deixados pelo passado. [...] A História se faz como resposta a perguntas e questões formuladas pelos homens em todos os tempos. Ela é sempre uma explicação sobre o mundo, reescrita ao longo das gerações que elaboram novas indagações e elaboram novos projetos para o presente e para o futuro, pelo que reinventam continuamente o passado. (PESAVENTO, 2003:58-59)
Deste modo, compreendemos o ato de escrever a história como um construto intertextual; os historiadores têm como instrumento de interpretação a leitura a contrapelo sempre numa perspectiva relacional entre o documento empregado na pesquisa, à historiografia e a teoria pertinente ao tema escolhido. O emprego do método é fundamental no processo de pesquisa, além de possibilitar que outros pesquisadores e leitores possam trilhar o mesmo trajeto na perspectiva de convergir com a narrativa histórica apresentada ou refutá-la.
Salientamos o método da descrição densa, fruto das intersecções de fronteiras da História com a Antropologia: “entretanto, os historiadores ao se utilizarem das propostas da Antropologia, historicizam esses conceitos, e o que buscam na recuperação das experiências dos homens no passado são exatamente as mudanças e permanências, as unidades e as diversidades de sentidos.” (PESAVENTO, 2003:111).
Neste sentido, vislumbramos a interdisciplinaridade como possibilidade de enriquecimento tanto no ensino da disciplina História como no desenvolvimento da historiografia, tendo em vista que toda produção cultural possui sua historicidade, sendo construída num tempo e espaço. Além disso, é inegável a existência de uma estética da recepção, isto é, a forma como cada individuo lê e interpreta, recepciona, apropria-se dos significados oferecidos nos textos históricos, literários, sociológicos, antropológicos, geográficos e a partir dessas inúmeras interpretações re-moldura sua forma de representar a sua própria realidade, assim subsidiado pelo mundo simbólico ofertado em textos e imagens; os indivíduos constroem novas aprendizagens e ressignificam a própria existência.
Como uma obra literária pode tornar-se fonte histórica
Em primeira instância, a relação entre história e literatura é uma das vertentes contemporâneas da História Cultural; essa equação resolve-se no plano epistemológico como esclarece Pesavento (2003:80) a partir de aproximações e distanciamentos entre a história e a literatura. Neste sentido, poderíamos discutir sobre o emprego da imaginação, da ficcionalidade e do imaginário na escrita do texto histórico e literário, porém optamos em refletir sobre a aproximação entre história e literatura a partir do conceito de representação.
Chartier em A história cultural define o conceito de representação como: “instrumento de um conhecimento mediador que faz ver um objeto ausente através da substituição por uma imagem capaz de o reconstituir em memória e de o figurar como ele é”(CHARTIER,1990: 20), o pensamento de Pesavento acerca do conceito de representação converge com Chartier para ambos autores a idéia que destaca - se é a da substituição.
Pesavento evidencia que: “representar é, pois, fundamentalmente, estar no lugar de, é presentificação de um ausente; é um apresentar de novo, que dá a ver uma ausência. A idéia central é, pois, a da substituição, que recoloca uma ausência e torna sensível uma presença.” (PESAVENTO, 2003:40) de acordo com a Pesavento o conceito de representação é estar no lugar de, tomar o lugar do outro, no caso da narrativa historiográfica, isto é, uma construção intertextual acerca de um fato passado – têm como premissa a possibilidade de verificação dos vestígios, evidências extraídas das fontes que relatam o fato histórico. Representar é apresentar de novo, embora exista dissenso, a autoridade de um texto histórico faz com que o mesmo tome o lugar do passado, entretanto é necessário lembrar que os questionamentos fazem parte do oficio do historiador, é preciso não esquecer que todo conhecimento é uma construção. Pesavento evoca a ficção não como:
[...] o avesso do real, mas uma outra forma de captá-la, onde os limites da criação e fantasia são mais amplos do que do aqueles permitidos ao historiador.[...]Para o historiador a literatura continua a ser um documento ou fonte, mas o que há para ter nela é a representação que ela comporta[...]o que nela se resgata é a re-apresentação do mundo que comporta a forma narrativa. (PESAVENTO, 1995:117)
Tanto a História quanto a literatura são discursos distintos que almejam representar as experiências dos homens no tempo, assim: “ambas são formas de explicar o presente, inventar o passado, imaginar o futuro. [...] ambas são formas de representar inquietações e questões que mobilizam os homens em cada época de sua história, e, nesta medida, possuem um público destinatário e leitor.” (PESAVENTO, 2003:81)
A especificidade da leitura e escrita do texto histórico e literário é fruto da formação do estudioso que lê e escreve o que Pesavento evoca como “[...] a erudição: é esse capital específico do historiador que deve estar à disposição para estabelecer toda a sorte de correlações possível entre um acontecimento dado e outros, de forma a revelar os significados”. (PESAVENTO, 2003:118)
Assim relacionamos a obra literária com outros textos e enunciados tais como a biografia do escritor ficcional, o contexto no qual a obra foi produzida, procurando desenvolver uma metodologia reflexiva pautada na “pretensão de verdade”. Exatamente por este motivo, a formação de cada estudioso possibilita múltiplos enfoques a um único fato; além disso, existe a convergência de temas com outras disciplinas; assim é a formação intelectual, experiência de vida, a subjetividade do pesquisador que fornece os instrumentos de analise e determina a opção do pesquisador pelos conceitos e teorias que ira empregar em sua pesquisa.
Os estudiosos do discurso literário também dialogam com a história, fazendo uma leitura do contexto nos quais as obras ficcionais são produzidas, para melhor compreender a mensagem que o autor quer passar, seu estilo literário, sua escola. Porém as intenções, a forma de teorizar, os motivos com os quais cada pesquisador se orienta no ato de ler é diversificado. Ressaltamos ainda que e a forma como o leitor vislumbra e ordena os fatos dos acontecimentos reais ou imaginários que propicia sentido aos fatos e a compreensão da mensagem transmitida pelo texto.
Os historiadores, por sua vez, têm um compromisso com os fatos que interpreta que produz uma verossimilhança na sua representação narrativa acerca do passado. Segundo Pesavento (2006):
A literatura é narrativa que, de modo ancestral, pelo mito, pela poesia ou pela prosa romanesca fala do mundo de forma indireta, metafórica e alegórica. Por vezes, a coerência de sentido que o texto literário apresenta é o suporte necessário para que o olhar do historiador se oriente para outras tantas fontes e nelas consiga enxergar aquilo que ainda não viu. (PESAVENTO, 2006: s/p)
Por tanto e a partir das indagações que o historiador faz mediante um conhecimento previo do contexto histórico que pesquisa, é que torna-se possível essa relação frutífera para a História; assim “quando a história coloca determinadas perguntas, ela se debruça sobre a literatura como fonte.”(PESAVENTO, 2006: s/p)
Nilda Teves (2002) em seu trabalho intitulado: Imaginário social, identidade e memória, refere-se à necessidade de considerarmos “documento enquanto monumento”. Isto significa pensar o documento não só como vestígios do passado, mas também como representações da visão de mundo do seu autor, como uma construção cognitiva muitas vezes intencional capaz de perpetuar uma memória ou memórias selecionadas para permanecer na história. Mas sem sombra de dúvidas as fontes tornam-se instrumento de mediação entre presente e passado.
Entretanto, são as questões direcionadas pelo olhar do historiador que descobrem na leitura os discursos contidos nas fontes e faz com que as fontes forneçam novas pistas para a reflexão e investigação do passado.
Portanto uma analise de uma obra ficcional feita por um historiador provavelmente indagaria quais as contribuições desta obra para a leitura e compreensão do imaginário da sociedade analisada, isto é o que a obra transmite de seu tempo? E como transmite ou ainda com quais intenções transmite? Pesavento explica que:
a literatura permite o acesso à sintonia fina ou ao clima de uma época, ao modo pelo qual as pessoas pensavam o mundo, a si próprias, quais os valores que guiavam seus passos, quais os preconceitos, medos e sonhos. Ela dá a ver sensibilidades, perfis, valores. Ela é fonte privilegiada para a leitura do imaginário. [...] Para além das disposições legais ou códigos de etiquetas de uma sociedade, é a literatura que fornece os indícios para pensar como e por que as pessoas agiam desta e daquela forma. (PESAVENTO, 2003: 82-83)
As obras ficcionais podem ser lidas como entretenimento ou com lócus privilegiado para a leitura da sociedade em foco, além de abrir uma porta para a dimensão cultural, para questionarmos e refletirmos acerca das questões sociais, tornando - se uma fonte documental privilegiada para pensar a História.
Referência Bibliográfica
CHARTIER, Roger. A História Cultural. RJ: Bertrand, 1990.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
__________. História & literatura: uma velha-nova história, Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006, [En línea], Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL : https://nuevomundo.revues.org/index1560.html . Consultado en 11de maio de 2009.
__________. Relação entre História e literatura e representação das identidades urbanas no Brasil (século XIX e XX). In: Revista anos 90. Porto Alegre, n° 4, dez. de 1995. pp.115 – 127.
TEVES, Nilda, “Imaginário social, identidade e memória.” In. Ferreira, Lucia M. A, Orrico, Evelyn G. D. (orgs). Linguagem, identidade e memória social: novas fronteiras, novas articulações. Rio de janeiro: DP&A, 2002, p.53-67.
Patrícia Martins Alves do Prado
Graduada em História pela Universidade Estadual de Goiás
Especialização em História Cultural: Imaginários, Identidades e Narrativas pela UFG (em curso)