MIOLO DE POTE - Edson Batista da Silva

18/01/2020 18:09

Fonte da imagm: https://joaonavesdemelo1.blogspot.com/

 

É dia treze de dezembro, o sol nasce reluzente, aqui e acolá, numa grota, numa poça de lama, num pequeno córrego a saracura, o sapo, a perereca, a seriema cantam, é sinal de que a chuva chegará no sertão de Goiás. O vento parece que está assim meio parado, uma quentura dos infernos, sem fazer nada a água saí pelos poros. De longe, botando os olhos na estrada que saí da velha casa que nasci, os raios solares absorvidos tremulam como ondas de uma lagoa que tem as águas tocadas pelo vento. O capim que brotou com as primeiras chuvas, já ao meio dia fica parecido com as fitas que enfeitam as festas de Santos Reis, retorcido, murcho, agoniza pela falta d’água.

Lá pelas quinze horas as nuvens no céu dançam como uma companhia de balé, vão e vem de um lado para o outro, mas lá pelas dezoito horas terminam seu espetáculo, nenhuma gota d’água caiu no Cerrado. Uma camponesa satiriza: “seria bom se a gente desse um litro de pinga para elas, talvez assim chuvia.”  Enquanto isso as vacas ruminam as últimas folhas viçosas da braquiária, os últimos e resistentes poços d’água agora são um cadinho de lama vermelha e cinzenta.  Os córregos, as aguadas têm um filetizinho minguado d’água, isso quando tem, noutros restam folhas secas e alguma umidade na areia, habitada por insetos diversos.

O Rio Índio, local de memórias da infância, onde tomava banhos e pescava Piau, Tubarana, Papa-terra, Mandi e, às vezes, em tempos de sorte, algum Pintado, também tem tão pouca água que os olhos de qualquer sertanejo local marejam ao olhá-lo. O camponês goiano saí na varanda da casa, retira o chapéu, dá uma conferida no “tempo” e murmura: - É.....a coisa tá feia, num chovi não, tá isquisito mesmo. Incomodado, angustiado com a situação os sinais não são bons. O sal está seco, as nuvens também estão secas, não tem umidade suficiente para produzir chuva, a desolação aumenta. As saracuras, as pererecas, os sapos cantam num misto de esperança e desespero.

Resta apelar para Santa Luzia, em outros tempos dia de Santa Luzia chovia, mas esse ano nem ela deu jeito. A secura toma conta do Cerrado, ao camponês resta a nostalgia dos tempos que a chuva começava em setembro e terminava em abril. E não tem outro fio de prosa, é daquela situação que você pode até querer emendar outro fio de conversa, mas o sujeito sempre dá um jeito de conduzir o “papo” para a falta de chuva. Alguns, os mais avançados na idade, rememoram os tempos dos rios caudalosos, os meses que a chuva não arredava pé nem um dia. Outros retomam na memória coletiva do grupo um mês de veranico intenso, que ameaçou de perda a roça da família, situação contemporizada com a chuva que veio logo em seguida e garantiu mesa farta.

Parece que todos ali têm um acordo, o clima e o Cerrado já não são mais os mesmos dos tempos de outrora. Alguém diz que na sua propriedade o poço semi-artesiano já não é mais suficiente, teve de perfurar um poço artesiano, outros tentam remediar a secura dos córregos com a construção de represas. Na comunidade, um ou outro da “língua mais solta” deixa escapar que tal fulano avarento e com mais recursos cercou o córrego tal, os sujeitos abaixo ficaram sem água. A redução do volume d’água nos rios do Cerrado associa-se a privatização, o que promove a crise hídrica. Alguns membros do grupo dizem que as nuvens não estão pesadas, o “tempo não fica mais assim embeiçado” como antes, com nuvens escuras, aquele paredão que é sinal de chuva certa.

Aqueles mais atentos dizem que o Cerrado foi serrado, sem árvores não tem chuva, também tem o aumento dos carros, com emissão de dióxido de carbono, que amplia a temperatura. É o tal do aquecimento global, que altera o regime das chuvas. Outros tem outras explicações contrapostas e peculiares. A quem diga que queimar pneus aumenta a chuva, outros dizem que desmatar aumenta a água nos rios e córregos, pois as árvores sugam a água que iria para os cursos d’água. Mas todos concordam num ponto: “só Deus dá conta, se Deus não tiver dó todos nós estamos perdidos. Só Deus dá providência. ” 

Como é tempo de Santo Reis, os homens e as mulheres do sertão goiano se mobilizam na feitura do doce, na arrumação do porco, da vaca, das galinhas e frangos, abatidos para serem oferecidos no pouso e na entrega da folia. Alguém me confessa: Essa devoção não é de fulano, de beltrano, não é de ninguém, isso aqui é devoção do povo, da turma aqui da comunidade, eu não faço a festa sozinho, você não faz a festa sozinho, é todo mundo que faz a folia. Tem gente que diz que alguns só vão pra comer na folia, mas se não for ninguém quem vai comer esse tanto de comida aqui.

A comida é um símbolo, uma oferenda, uma linguagem que comunica, que escapa a mera função de reposição das necessidades fisiológicas. Tempo seco, chuva minguada, córregos secos, plantações definhando, Estado opressor/espoliador, vida custosa, mundo cabrón e fodido fazem os sujeitos apelarem para Deus. A esperança se renova no sertão goiano, “Santo Reis vai mandar chuva pra nós.” Os sujeitos arrodeiam em volta da mesa de comida, em torno do altar, se ajoelham durante o terço, carregam com fervor a bandeira do santo. Rezam, pedem com fé, quem não sabe rezar mostra o olhar, como cantou Renato Teixeira em Romaria.

A chuva é retomada no sertão de Goiás no início de janeiro, os rios estão cheios, barrentos e lamacentos é verdade, dado a enorme quantidade de solo carreado para as suas calhas. O desmatamento, o uso e a ocupação predatória do Cerrado faz a água correr como um “catingueiro assustado.” Sem paragem, sem repouso, ela não infiltra, sem infiltração sua abundância é ligeira como um “coice de porco.” O solo mais compactado abrevia mais ainda sua duração abundante. A esponja vai ficando cada dia mais seca, os rios perenes estão tornando-se intermitentes, as nascentes que antes jorravam água hoje estão mortas ou afogadas. O mercado, o sistema vigente não está preocupado e nem nervoso, são desumanos em sua natureza intrínseca, não sentem as dores, as angustias, o gemido do povo do Cerrado.

 O Estado, gerente dos donos do mundo quer saber se os números da bolsa de valores, se os dados da economia vão bem. Quem quer saber se chove ou se não chove, se come ou não se come nesse país, nesse mundo. O importante é a economia dar sinais de recuperação. Ter trabalho, comida, moradia, direitos é sinal de privilégio, todos devem ser meros sobreviventes, quem tem isso é privilegiado e quem defende isso é “filha da puta”, comunista, deve morrer.

O camponês goiano, educado pela cultura da derrubada, da exploração predatória, em que a exaustão de uma área implica a abertura de outra, vê a agonia do Cerrado e das suas gentes. Ele está preocupado, angustiado, mas com poucos instrumentos capazes de arrefecer ou resolver a situação. Parece entregue a resignação, ao conformismo. Mas como lembra um sertanejo de outras paragens, nesse caso do Oeste baiano: Meu filho, sem água a melhor terra não vale nada, sofre o rico e sofre o pobre, sofre quem vive no campo e quem vive na cidade, porque ninguém vai ter o de comer. Ninguém vai ter o que vender, ninguém vai ter trabalho e mesmo com ricurso ninguém vai ter como comprar. A gente deveria pensar um pouco nessa “prosa”, mas isso é assunto pra outro “miolo de pote*.”

 

Edson Batista da Silva
Professor do curso de Geografia da UEG - Câmpus Formosaa
edson_bat_silva@hotmail.com

 

*Tião Lobo, amigo, professor e camponês goiano diz que miolo de pote é aquela conversa jogada fora.  Realizada sem muita pretensão e compromisso, em que o sujeito fala o que pensa, com espirito mais livre. Geralmente é desenvolvida com café e pão de queijo, para celebrar a vida, com suas angustias e alegrias.