MUITAS CULTURAS INCOMODAM MUITA GENTE, UMA CULTURA INCOMODA MUITO MAIS - Avacir Gomes dos Santos Silva
No dia 07 de junho de 2016 participei do Seminário de Antropologia Cultural, organizado pelo professor Nelson Costa, juntamente com a turma do 1º Período do Curso de Direito da Faculdade de Rolim de Moura (FAROL). Além dos discentes da FAROL também se fizeram presentes os acadêmicos do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Campus de Rolim de Moura.
Para realização do seminário fui convidada para abordar o tema: cultura popular. Assim, apresentei a palestra intitulada: “Culturas: modos de estar no mundo”. Discutir cultura é algo apaixonante. Por meio de indagações e críticas que me acompanham ao longo da carreira acadêmica apresento neste escrito algumas das ideias que tenho formulado sobre cultura e seus agenciamentos.
1- O termo cultura é por natureza plural. Não existe cultura, mas culturas tanto em termos conceituais quanto prática social. Quantos povos e grupos culturais existirem tanto serão as manifestações culturas. Cada grupo possui uma forma de estar no mundo. Essa jamais será idêntica, igual ou semelhante a outra, pois em espaços e tempos as culturas serão diversamente configuradas.
2- Cultura é um conceito caríssimo para as ciências sociais e humanas. Como não existe um único modo de cultura também não existe um conceito único/universal, que dê conta da complexidade do tema. Mas, compreendo a cultura de cada indivíduo, coletividade e sociedade como o modo de existir. Isto tem haver não somente com as manifestações culturais do tipo música ou dança, vai muito mais além, envolve sistemas como: Linguagem, Pensamento, Comportamento, Atitudes, Valores, Ética, Moral. Esses elementos formam a compreensão de mundo do indivíduo, como este percebe a própria existência e pensa a existências dos outros seres no mundo.
3- Comumente a cultura é percebida no senso comum e, muitas vezes legitimada pelo discurso academicista a partir dos pareamentos. É importante ressaltar que a ideia de pareamento é o modo como o povo ocidental compreende o mundo. Assim, classificamos e organizamos as coisas por meio de seus pares. A cultura não fica imune a essa concepção. Desta feita a cultura é classificada entre: erudita x popular; elite x povo; nacional x subcultura; moderna x tradicional; global x local; literatura x folclore; obra de arte e artesanato; cultura de consumo (mercadológica) x cultura clássica.
4- A priori não existiria problema em classificar as culturas por meio de seus pareamentos. No entanto, devemos considerar que subentendido a classificação está implícita outra concepção: há culturas que são menores que outras; há culturas que necessitam sair do status inferior para alcançar um status superior. As consideradas culturas: popular, tradicional, o artesanato, o folclore, as subculturas, as culturas mercadológicas, enfim, aquilo que é feito pelo povo e para o povo é de qualidade inferior aquilo que é feito em nome da e para a elite. Sendo culturas inferiores, as manifestações advindas do popular necessitam ser superadas ou descartadas. Desta lógica se origina, dissemina e se legitima o preconceito e a discriminação contra as culturas populares.
5- Como então podemos pensar as culturas? É fato que o capital possui o desejo de transformar os processos sociais a partir da lógica homogeneizadora. O que proponho é pensarmos as culturas pelo viés do desvio. O desvio que promove a ruptura da lógica que transforma tudo em mercadoria: processos, pessoas, natureza, tempo e espaço, Assim tudo é plausível de negociação, de compra e venda.
6- Tempo e espaço. De todos os elementos epistemológicos tempo e espaço são fundantes para compreendermos os aspectos culturais. A forma como um grupo se relaciona-se com a ideia de tempo, espaço agenciam os demais fatores da vida cotidiana. Nas sociedades capitalistas eles elementos são as principais mercadorias de consumo. Nas culturas desviantes esses estes são percebidos e vividos por meio de uma lógica diferente.
7- No cotidiano, no enfrentamento do modo de vida capitalista, também somos indivíduos de práticas desviantes. Quando conseguimos manter uma atitude de negação frente ao que nos é imposto: beba, coma, fume, vista, ouça, ande, reze, case, durma, assista, leia, cante, use, compre, lave, caminhe, cozinhe, cuide, preserve, isto ou aquilo, desse ou daquele jeito nos colocamos numa atitude desviante.
8- O capital, por mais que deseje, não consegue homogeniezar todos os corpos e mentes. Apesar de inseridos socialmente no mundo do capital os grupos portadores de culturas desviantes, tais como: os ribeirinhos, os quilombos, os indígenas, os extrativistas, os ciganos e os andarilhos, nos interpelam sobre a possibilidade e outras formas de existências, para além do capital.
9- Os grupos portadores de culturas desviantes são assim concebidos por manterem com o tempo e espaço relações diferentes da lógica capitalística. O tempo do que fazer e como fazer é ditado muito mais pela força da natureza do que pelo desejo humano. O espaço, muito mais que um pedaço de terra a ser cortado e vendido é um elemento que garante a existência dos indivíduos e do grupo. A relação com o espaço é de pertença e não da lei do mercado. Entre o espaço-tempo-humano há uma relação de co-existência.
10- Os grupos portadores de culturas desviantes não trazem consigo a bandeira de luta, projeto de transformação da sociedade ou da tomada de poder. Quiçá, assim continuem. Assim, a ideia desses grupos não é sair da condição de “margem” e assumir o centro, e partir deste ditar a nova ordem mundial. O papel social mais significativo daqueles grupos é nos provocar a interpelação.
Após a exposição oral dessas ideias passamos a segunda parte do seminário. Momento em que as pessoas presentes poderiam fazer uso da palavra para perguntas e/ou contribuições. A seguir, amplio um pouco mais a interpretação dessas questões. Espero, que possamos aprender, por meio da reflexão, sobre a complexidade e a lindeza das nossas culturas.
P1- Toda e qualquer manifestação, seja qualquer aspecto, que a humanidade adotou no passado, consiste em algo chamado cultura? Não faz-se por necessário algo intuitivo a ampliação de conhecimento, do pensamento etc.? Ou ao menos que a criatividade seja objetivo “visionado”?
R: Esta pergunta envolve várias análises. Primeiro, a cultura diz respeito sim a qualquer manifestação que a humanidade adotou no passado. A cultura é antes de tudo resultante de um dado momento histórico. Destarte, cultura e história estão intimamente interligadas e mais ainda são interdependentes. Por ex.: por longas datas foi necessário o trabalho das costureiras para a confecção de roupas. Com a industrialização desse processo, hoje é mais fácil e mais rápido comprar as roupas nas lojas de confecções. Mas observem aquilo que no passado era algo comum, a procura das costureiras, no presente continua a existir, mas passa a ser utilizado em casos específicos. As mulheres, principalmente, continuam a procurar os serviços das costureiras para confecção de roupas para os dias de casamento. Assim, uma cultura que era comum no passado pode tornar-se de pouco uso no presente, ou ser inacessível ao público geral, p. ex., os famosos estilistas que cobram caríssimo para confeccionar uma roupa exclusiva e comandam o mundo da moda com seus lançamentos. Uma cultura simplesmente pode deixar de existir ou passar por novas releituras. Outro elemento da pergunta não diz respeito diretamente à cultura, mas a produção do conhecimento, ou como produzimos o conhecimento. A intuição é um processo inerente ao conhecimento. Especificando, a intuição é o primeiro passo para a construção do conhecimento. O conhecimento formulado é a própria racionalização da intuição. Terceiro elemento da pergunta está relacionado à criatividade. Esta deveria sim ser um aspecto visionado. As áreas da produção artística são mais propicias ao desenvolvimento da criatividade. É interessante pontuar que uma característica do povo brasileiro é a criatividade, que ultrapassa a área artística em busca de soluções para as problemáticas cotidianas. A capoeira, a feijoada, a MPB são exemplos de processo culturais que inicialmente foram pensados para um determinado fim e com a criatividade do povo brasileiro se transformaram em outras tantas releituras culturais.
P. 2- Qual a cultura de Rolim de Moura?
R- Esta pergunta aparentemente parece simples, mas é altamente complexa. Se a ideia que perpassa a questão é a existência de uma cultura pura a resposta é: Rolim de Moura não tem cultura. Como não existem cultura nem “raça” puras, então respondo que sim, Rolim de Moura possui cultura. O que vai caracterizar a cultura da nossa cidade é a diversidade cultural, a mistura das culturas sulista, nordestina, indígena, negra, européia e tantas outras. No entanto, as culturas não são transportadas de um lugar para o outro em seu caráter “natural”. As culturas passam pelos processos: desterritorialização e reterritorialização. Ou seja, em cada novo espaço a cultura recebe novos elementos, os quais irão renovar e provocar novas releituras, modos diferentes de fazer a mesma coisa. Vejamos o caso dos CTGs. Os gaúchos têm a preocupação de implantar os centros em todas as cidades que chegam com a intenção de manter as tradições gaúchas. No entanto, o funcionamento e a própria dinâmica dos CTGs será especifica de cada lugar. Por que o próprio lugar é diferente, as pessoas, as condições, a aceitabilidade, as convenções, a participação serão diferentes daquilo que foi gestado inicialmente como CTGs.
P. 3- Na sua opinião, o que devemos fazer para resgatar a cultura do simples, assim classificada, a cultura nacional brasileira, que a cada dia vai sucumbindo as culturas impostas a todos?
R- A essência questão está relacionada à pergunta sobre a cultura de Rolim de Moura. Em primeiro lugar, o “resgate” de uma cultura só seria possível se houvessem culturas puras, intactas, cristalizadas no tempo e no espaço. Eu sempre brinco com minhas alunas: “resgate quem faz é o pessoal do corpo de bombeiro”. O que podemos fazer é valorizar, apreciar, incentivar, divulgar as inúmeras formas de manifestações culturais. Segundo, é preciso esclarecer que não existe cultura simples. Toda e qualquer cultura, e suas manifestações, é resultado de um exercício cognitivo, de criatividade e acima de tudo, de busca de respostas aos problemas existenciais humanos de seus praticantes. Terceiro lugar, sobre o fato das culturas “simples” ou brasileira estarem sucumbidas. As culturas por não serem cristalizadas, paradas no tempo e no espaço, estão sujeitas a seguinte dinâmica: surgimento, desenvolvimento (ápice) e superação ou declínio. Esses processos podem durar anos, décadas ou até mesmos séculos. Mas de uma forma mais demorada ou mais lenta todas as formas de cultura passam por esses períodos. Há razão, ao afirmar que existem formas de culturas que são impostas. A mídia tem um papel fundamental quanto a isso. Pois, a imposição cultural é feita de maneira sutil, quase que imperceptível, para a maioria dos brasileiros. Como resultante da massificação cultural, p.ex., os consumidores compram Gillette, no lugar de lâmina para barbear; Bombril, ao invés de esponja de aço; OMO no lugar de sabão em pó. Tem uma propaganda do guaraná antártica que exemplifica muito bem esta ideia: “sede não é nada, imagem é tudo”. É assim que funciona a imposição cultural, ela nos faz substituir a essência pela aparência das coisas, dos objetos e até mesmo das pessoas.
P. 4- Qual é o limite de uma ação cultural para um bom desenvolvimento social? E qual a importância de uma expressão cultural na formação do caráter de um indivíduo?
R- Estas duas perguntas são altamente complexas. Espero conseguir clarear algumas considerações a respeito delas. Desenvolvimento social e ação cultural são dois elementos interligados. Quanto mais valor um povo destina a sua cultural maior é o grau de desenvolvimento humano do país. Os países considerados de primeiro mundo, ou altamente desenvolvidos são aqueles que valorizam a cultura: língua, religião, moeda, música etc. Nos países subdesenvolvidos a exemplo do Brasil, e do nosso estado, a cultura em sues diversos aspectos não é valorizada. Ainda mantemos no nosso imaginário social a ideia de que para sermos modernos e desenvolvidos devemos extinguir as coisas antigas. Para se construir usinas hidrelétricas exterminam as populações indígenas e ribeirinhas, para pavimentar o centro da cidade de Rolim de Moura, as árvores da Av. Norte Sul foram arrancadas. Nas últimas chuvas a cidade tem sido alagada de forma assustadora, por que pavimentaram todo o centro da cidade sem pensar na vazão das águas. Empreendimentos econômicos são construídos em cima de sítios arqueológicos. Os acidentes de trânsito é o que mais causa vítimas entre os jovens da nossa cidade. Entre outros motivos, por que quem planejou o espaço da cidade, definiu o cruzamento horizontal de todas as ruas. Uma simples mudança, eliminar os cruzamentos diretos mudaria esse triste quadro. E como havia pontuado anteriormente, o pensar sobre as coisas também é manifestação de cultural. O Brasil é um país riquíssimo em cultura, patrimônio natural, imaterial, diversidade humana, linguagem, artes etc., e simultaneamente somos um país pobre por que não conseguimos enxergar, reconhecer e valorizar as nossas riquezas. Outro povo com outra forma de ver o mundo, com as riquezas que possuímos se tornaria uma potencia mundial. Quanto à importância de uma expressão cultural na formação do caráter de um indivíduo ela é inegável. Eu digo que a cultura é os óculos, por meio do qual enxergamos o mundo. A cultura nos envolve desde a forma como somos concebidos até a forma como seremos enterrados e lembrados depois da morte. Entre nascer e morrer, a linha que percorremos entre estas distâncias relaciona-se com a cultura. Os nossos gostos, preferências, sonhos, amigos, amores, inimigos são referenciados pelo mote cultural. Por que uns gostam de coca-cola e outros preferem açaí? E gosto é uma coisa que se discuti sim. Porque as experiências de paladar são diferentes, a maneira como o meu grupo familiar, inicialmente e depois o grupo coletivo se alimentam vão formar o meu paladar. As roupas que usamos, e que num primeiro momento, marcam as diferenças de gênero, são definidas culturalmente. A forma como homens e mulheres comporta-se é resultante da nossa cultura. Nesse sentido, é importante lembrar que não existe a possibilidade de um ser humano ser considerado sem cultura, sem educação ou antissocial.
P.5- Você admite que o sertanejo universitário, musicas essas que tratam da ausência de criatividade, seria considerado um elemento cultural? E sinceramente envergonha-se de que admitamos futuramente não haverá cultura a não ser o anticulturalismo da suposta cultura do whatsapp e o facebook? Que não haverá uma sequer cultura que não seja a imposta pelo capitalismo?
R- Esta é uma pergunta retórica, por que nela já está embutida a resposta e a forma como a pessoa pensa a cultura. Então vejamos. Primeiro, a pergunta já determina que o sertanejo universitário é uma música sem criatividade. Será? Vamos analisar um verso de uma música de maior sucesso nos últimos anos: “ai se eu te pego, delícia, assim você me mata”. Delícia em geral é uma expressão usada ao se comer algo agradável. O verbo matar pode fazer referencia ao morrer de amor pela pessoa amada. É possível morrer de amor ou pela gula. Amor e gula são, nesse caso, referencias a comida. Você quer mais criatividade do que isso. O cara chama a mulher de delícia e diz que vai morrer de tanto “comê-la”, tudo isso “di boa” (como vocês jovem falam). Qual menina não cairia nessa cantada? Além de criativa a letra é também irreverente. Não se pode esquecer que este estilo de música é feito pelos jovens e para os jovens. A juventude é o tempo da criatividade, da irreverência, da brevidade, da aventura, das conquistas, da ideia de que o mundo pode esperar, o importante é ser feliz. Exatamente esses sentimentos são expressos nas produções musicais do sertanejo universitário. Não há nenhum problema com o estilo sertanejo universitário. Há problema quando a pessoa só ouve um único estilo musical e desta feita não desenvolve a sensibilidade sonora para sentir a beleza de outros ritmos e sons e melodias. Outro aspecto inerente da cultura, ela sempre existiu, desde que a espécie humana passou a conviver em grupos e continuará a existir enquanto houver humanos sobre o planeta terra, se é que eles não existem em outros planetas. A cultura das redes sociais é uma forma de representar o mundo e de ser representado, mas não é a única forma é nunca será hegemônica. A comunicação via facebook, whatsapp, instagram e twitter são formas inovadoras dos jovens se comunicarem, mas não só eles, por que essas tecnologias têm o poder de encantar as crianças, adultos e idosos. Por outro lado, tudo que é novo causa medo, para aqueles que não dominam a técnica. Esse medo imaginário aconteceu com os adventos do cinema, do rádio, da televisão, estas tecnologias também quando surgiram foram considerados pelos adultos da época como elementos de desestruturação familiar e social. Por fim, claro é que existem culturas que são impostas pelo capitalismo. Não podemos esquecer que em outros tempos históricos, toda a forma de poder dominante sempre impôs uma determinada cultura, que proporcionava maior controle do povo. Foi assim na Idade Antiga, no Feudalismo e agora na Modernidade. A cultura é usada como instrumento de dominação, controle e manipulação. No entanto, o que considero como culturas desviantes, são formas que fogem a lógica do capital. O fato de não percebermos outras culturas não significa que elas não existam. Como existem práticas que no nosso cotidiano nos libertam da imposição social, existem culturas que se organizam para além da ideia de lucro ou acumulo do capital. Pode acreditar, há vida inteligente para além do capitalismo.
P. 6 - Em seu entendimento a cultura influencia em que na formação social do individuo?
R- Esta pergunta está analisada na questão 4. Para reafirmar, sim, em meu entendimento a cultura influencia a formação social do indivíduo, não apenas social, mas também coletiva e até mesmo a subjetiva. Ou seja, para ser diferente do meu grupo, essa diferença é construída a partir daquilo que eu sou capaz de identificar como igual e de negá-lo como representativo da minha forma de ser e estar no mundo.
P. 7- O que será da nossa cultura daqui há 20 anos tendo em vista a influencia das redes sociais sob os jovens?
R- Esta questão está contemplada na pergunta 5, mas vamos pensar um pouco mais a respeito. Daqui a 20 anos é um tempo consideravelmente longo, para apostarmos o que vai acontecer com a nossa cultura. Nenhuma previsão é possível. Nem mesmo Nostradamus poderia prever tal preocupação. Talvez, até lá as formas de comunicação via redes sociais tenham se tornadas obsoletas. Vocês com certeza se lembram do Orkut, foi uma “febre” aqui no Brasil, de uma hora para outra, sem mais nem menos, ou em função da necessidade de novas tecnologias deixou de existir. O que será da cultura no futuro? Eu não sei, mas em uma coisa eu acredito: “o novo sempre vem” e sempre vence. Ainda bem que é assim, caso contrário, ainda estaríamos vivendo na Idade da Pedra Lascada.
P. 8- Defina a cultura rondoniense.
R- A analise desta questão está contida na questão 2. Mas para ressaltar, cultura rondoniense, cultura rolimourense, cultura brasileira, não existem em formas puras, ou em forma cristalizadas. A característica das nossas culturas é a diversidade. Esta é a maior riqueza do nosso povo, do nosso país. Somos diferentes em tudo. Alias a ideia de “raça” pura, de cultura pura levou a Alemanha a declarar a Segunda Guerra Mundial. Hitler defendia que a raça ariana era a raça pura e que todos os outros povos e culturas diferentes deveriam ser exterminados. O pensamento único, o modelo de família único, a religião única, o partido político único, a forma de amar única, são desejos mutiladores da beleza da diversidade do mundo e da vida. Vivamos a diferença, esta é a que permite a humanidade humanizar-se cada vez mais.
P. 9- Com relação ao preconceito que algumas culturas sofrem. Como poderiam ser introduzidas essas culturas ao meio social, para que possam ser trabalhadas e conhecidas mais de perto por toda a sociedade? Como poderíamos desenvolver uma melhor familiarização como todas essas culturas?
R- Concordo com você quanto ao preconceito entre os grupos culturais. Este preconceito existe em função das classificações que são estabelecidas. De um lado a cultura: formal, elitista, moderna, avançada, erudita e, de outro: a cultura popular, do povo, tradicional, a subcultura e a cultura mercadológica. Eu não concordo com essas classificações, pois em síntese elas defendem que há culturas boas e culturas ruins ou de menor qualidade. Em suma, as classificação defendem que a cultura dos ricos é melhor que a cultura dos pobres. Quanto ao como poderiam ser introduzidas essas culturas no meio social? Veja bem, toda cultura está inserida num dado grupo social. Agora, o que devemos nos perguntar é: o que fazer para que essas culturas possam ser mais conhecidas? Como poderíamos desenvolver uma melhor familiarização como todas essas culturas? O incentivo a divulgação das práticas ou manifestações culturais passa necessariamente pelo reconhecimento governamental e por políticas públicas. Se o governo não define a cultura como elemento importante do seu plano de governo, estes pequenos grupos não vão conseguir alcançar outros espaços além daquele reduzido número de pessoas diretamente ligadas a aquela cultura. Na nossa cidade o descaso com a cultura é típico. Há dois anos ou mais que não temos o desfile das duas únicas escolas de samba. Qual a justificativa dos prefeitos: “não temos dinheiro para a educação, então não vamos investir no carnaval”. Ora, a cultura é uma pasta secretariada como outra qualquer: educação, saúde, segurança, fazenda, meio ambiente. No plano orçamentário, com base na arrecadação do município todas as pastas devem ser contempladas. Talvez não com a mesma quantia de verbas, mas uma secretaria não pode ficar sem recursos pela justificativa do grau de sua “menor” importância. Assim, voltamos a pergunta 4. Sem a valorização da nossa cultura não há possibilidade de desenvolvimento social e humano. O ser humano necessita da cultura como necessita do ar para viver. Ao se retirar a cultura de um povo, nada mais lhe restará. Agora me recordo de um verso da música dos Titãs: “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. É nisso que eu acredito: a cultura, a arte, a poesia, a literatura, o conhecimento, a diversão, o lazer, a brincadeira, o esporte, a dança são elementos de libertação humana. Por isso, para os governantes é perigoso proporcionar a povo o acesso a esses processos de libertação e emancipação.
P. 10- Será que a cultura dos indígenas está se perdendo? Pelo fato de quando a tecnologia começou a chegar os índios exigiram para que pudessem ter? A meu ver, para que esta cultura seja preservada não poderia deixar que as tecnologias tomassem conta das tribos. Qual a sua visão?
R- A minha visão é totalmente inversa. Porem, vamos por parte. Primeiro, a ideia subjacente a questão é de que os índios teriam uma cultura pura e como tal deveria ser preservada. Em tantos outros momentos tenho afirmado que não existe cultura pura. Vamos considerar que antes da chegada dos colonizadores ao Brasil, (nem vou entrar na questão do tal descobrimento), os índios possuíam uma cultura pura. Então eu lhe pergunto: qual índio? Em 1500, existiam de acordo com as estatísticas aproximadamente uma população de 3 a 4 milhões de índios. Entre os grupos mais conhecidos estavam: Tupi, macro-jê, aruak e karib cada um com uma língua, cultura, crenças, organização política social, diferente uma das outras. De qual índio você está falando? Ou dos índios Araras, Caripunas, Pakaás Novos, Cinta Larga, Suruis, Gaviões, Karitianas, Tapari, Makurap, Jatobi, Kaxacaris, Uru-Eu-Wau-Wau, para citar apenas os grupos ou nações indígenas de Rondônia. De qual índio estamos falando? Sabe o que existe de igual entre os grupos indígenas? NADA. A não ser a nossa incapacidade de perceber o diferente. Assim sendo, fica mais fácil negar o diferente e chamar todos de INDIOS. Segundo, a questão do desejo de consumo índios quanto às novas tecnologias. Vamos considerar um primeiro aspecto dentro da questão. O conceito de tecnologia. O que você chama de tecnologias, são consideradas TICs (Tecnologias da Informação e da Comunicação). Desde o dia que o ser humano bateu uma pedra na outra e produziu o fogo, ou quando ele usou um pedaço de pau para alcançar um fruto ou para se defender do ataque dos animais ele fez uso da tecnologia. A técnica é a extensão do corpo humano. Tudo que usamos para realizar uma atividade é tecnologia e toda técnica é resultante de um pensamento racional. Então, mesmo antes da chegada dos portugueses, os índios já possuíam suas técnicas e tecnologias. Outras tantas tecnologias foram utilizadas pelos portugueses como forma de “atrair” e “seduzir” os índios. Sem essas estratégias diretas de dominação os colonizadores teriam que recorrer a violência física. É claro que em outros momentos ela também foi empregada, o que resultou no extermínio sistemático das nações indígenas ao longo dos anos. Mas isso é outra história. Voltamos a discussão da técnica ou a tecnologias. Na minha opinião, os índios devem ter acesso ao computador, internet, parabólica, relógio, carro, motocicleta e a todos os bens materiais produzidos; devem também ter acesso a educação; a universidade; devem ser vereadores, deputados, senadores, prefeitos e presidente; devem ter o direito garantido a terra, devem explorar as riquezas naturais das terras deles. Pense bem, não é o acesso a essas coisas ou o uso das tecnologias que fará com que a cultura indígena se perca. Pelo contrário, o acesso a esses bens materiais e imateriais poderão ser utilizados como forma de perpetuação e expressão da cultura indígena. Vamos pensar no seguinte, digamos que você que fez esta pergunta seja evangélico. Eu te pergunto: você deixa de ser evangélico por que usa computador, vai para faculdade, conversa com os amigos no “zap-zap”, anda de carro ou de moto? Ou digamos que você que fez a pergunta seja uma senhora casada. Você vai deixar de sê-la, por que passou a estudar na faculdade e a ter um emprego remunerado? (Apesar de alguns maridos, aqui da nossa cidadae não permitirem que suas esposas estudem por que acreditam nisso, mas isso também é outra história). Com certeza você respondeu não as minhas perguntas. Então eu lhe afirmo, o índio não deixará de ser índio por que agora ao invés do sinal de fumaça ele usa o celular. Ser índio, ser negro, ser cristão, ser branco, ser europeu, ser asiático, ser mulçumano, ser velho, ser jovem, ser homem ou ser mulher são marcas identitárias. A nossa identidade está estampada em nossos corpos, corações e mentes. Uma pessoa pode ir a um território indígena e passar dois ou mais anos naquele local (em geral os antropólogos fazem isso) e participar de todos os rituais, pintar o corpo, usar brincos e colares, adotar um nome indígena e até casar com um deles e ter filhos dessa relação e batizá-los por meio dos rituais indígenas, mas a pessoa nunca se transformará em um índio. A identidade é a marca que recebemos ao nascer. A cultura é a forma como expressamos a nossa identidade.
P.11- Seriam as culturas desviantes o modo de vida que deveria prevalecer, seriam elas as salvadoras da pátria?
R- As comunidades portadoras de culturas desviantes: índios, quilombolas, ribeirinhos, extrativistas, ciganos se constituem como tal por possuírem relações que fogem a lógica do capital, principalmente no que diz respeito à compreensão do tempo e espaço. No entanto, a meu ver, elas não possuem um projeto político de transformação da realidade ou da sociedade. O que elas almejam é o direito a terra, a cultura e ancestralidade deles. E é exatamente ai que reside a beleza dessas culturas. Elas não querem assumir o poder e impor uma nova forma de organização social. A função social das culturas desviantes ocorre no plano subjetivo de nos colocar frente a outras possibilidades de existência. Elas nos mostram que há diferentes formas de nos relacionar com o tempo, o espaço, a natureza, os bichos, com as pessoas e consigo mesmo. A ideia não é que, de agora em diante, todos nos tornamos índios, quilombolas ou ribeirinhos, mas que tenhamos consciência de que podemos estar no mundo e nos relacionarmos com os outros seres de maneira mais harmônica, menos competitiva ou menos devastadora. O desafio está posto. As culturas desviantes são hoje a representação da esfinge, da mitologia grega, que interpelava os viajantes: “decifra-me ou devoro-te”.
Avacir Gomes dos Santos Silva
Professora Doutora do curso de Pedagogia da UNIR/ Campus Rolim de Moura
Líder do GEAM (Grupo de Estudos e Pesquisas de Espacialidades Amazônicas)
avacir.santos@unir.br
____________________________________________________________________________________________________________________________
Ficha bibliográfica:
SILVA, Avacir Gomes dos Santos. Muitas culturas incomodam muita gente, uma cultura incomoda muito mais. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.6, n.8, 20 de agosto de 2016. [ISSN 22380-5525].