NÃO É A CARNE QUE É FRACA, É O BRASIL QUE JOGA MAL

20/03/2017 00:00

*Denis Castilho

Pior do que sofrer sete gols da Alemanha na última Copa do Mundo é assistir o modo como o país “joga” com sua política econômica. Após a divulgação da Operação Carne Fraca no dia 17 de março pela Polícia Federal, várias questões têm sido suscitadas. Dentre elas, três são o suficiente para atestarmos o “amadorismo” do país no “jogo econômico” e os prejuízos que isso representa às estratégias de desenvolvimento do território nacional. A primeira diz respeito ao caráter contraditório do agronegócio e à maneira como a agricultura camponesa é pautada pelas políticas públicas. A segunda é de natureza produtiva e está relacionada à ilusão de ética no capitalismo. A terceira envolve a inabilidade do Brasil diante da geopolítica do mercado mundial e o modo como isso é convertido em perversidade interna.

De acordo com dados do último Censo Agropecuário publicado pelo IBGE (2006), fica evidente a disparidade entre os números do agronegócio e da agricultura camponesa. Enquanto essa última ocupa 74% da mão de obra do campo e produz 70% do alimento do país, o agronegócio ocupa 26% da mão de obra e produz apenas 30% do que de fato vai para a mesa do consumidor brasileiro. Apesar disso, o crédito destinado ao agronegócio, que soma 86%, é bastante superior aos 14% destinados à agricultura camponesa que, aliás, enfrenta dificuldades para regularizar suas pequenas agroindústrias. A quantidade de terras utilizadas pelo agronegócio também é muito superior, alcançando 76%. Apesar do agronegócio ter maior produção global, com 60% do total da produção do campo – o que é justificado pelo foco nas exportações, esses dados ilustram a absurda desproporção com que é tratada a agricultura camponesa, mesmo sendo responsável pela produção do alimento deste país.

Além disso, o agronegócio é baseado em um modelo produtivo com inúmeras consequências socioambientais, algumas irreversíveis. Dentre elas, podemos citar a utilização irregular de águas e solos, a contaminação de ambientes e os sérios impactos na fauna e na flora. Ao contrário do que determinados setores defendem, o agronegócio não é limpo. Sustentado pela exploração de trabalhadores, seja no campo ou na indústria, esse modelo produtivo também esconde fatos vergonhosos, a exemplo do trabalho escravo ainda existente e pouco divulgado em pleno século XXI. A espoliação de áreas indígenas e a deficiente política de desenvolvimento em ciência e tecnologia para o aproveitamento da biodiversidade também são elementos que o acompanham.

Diante disso, não é novidade o que a Operação Carne Fraca tem revelado. Aqui entra a segunda questão. Diferente do que se costuma defender, irregularidades no atual sistema econômico não são específicas do Brasil. Corrupção, suborno e adulteração são “marcas” do capitalismo em qualquer parte do mundo. Engana-se quem acredita que empresas dos Estados Unidos ou da Europa são movidas pela ética. Convenhamos: não há ética no capitalismo. Essa ilusão de moral na produção, no entanto, não justifica o que se pratica. Pelo contrário, suscita uma ampla discussão sobre o sentido da produção e reforça o debate sobre a segurança alimentar. Voltando à questão, é devaneio imaginar que a Operação Carne Fraca foi desencadeada em função da saúde dos consumidores. Não há preocupação com isso. Se houvesse, a agroecologia seria prioridade e diversas empresas ligadas à produção de alimentos estariam fechadas. A utilização cada vez maior de agrotóxicos no Brasil também ajuda a entender esse cenário. Em 2008, por exemplo, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária passou a reavaliar o uso de 14 substâncias utilizadas na fabricação de mais de 200 agrotóxicos que, segundo avaliações internacionais, podem causar câncer e má formação fetal. Apesar disso, pesquisa da Universidade Federal do Mato Grosso encontrou substâncias como o Endosulfan em todas as 62 amostras de leite materno de mães do município de Lucas do Rio Verde que tiveram seus filhos entre 2007 e 2010 (Quadros, 2014).

Para a política econômica brasileira, as exportações (especialmente de commodities) são mais importantes do que o consumo interno – custe o que custar. Isso demonstra que estamos longe de uma evidente política que priorize a saúde pública, o desenvolvimento regional e a soberania alimentar. Enquanto isso, o baixo investimento em ciência e tecnologia impacta na competitividade, abre mercado para empresas de países como a China e beneficia a entrada cada vez maior de produtos com alto valor agregado no país. A pactuação entre agroindústrias brasileiras e empresas estrangeiras na compra de terras em solo nacional também revelam a fragilidade interna do país e a sua abertura desregrada. Mas, se o Brasil joga mal em casa, não menos pior é o modo como joga fora. O amadorismo é evidente sobretudo no campo do mercado internacional, ao qual o país se entregou e passou a jogar contra ele mesmo, revertendo a inabilidade externa em perversidade interna. Aqui entra a terceira questão: a deficiente estratégia nacional diante da geopolítica do mercado mundial.

A crise de gestão em que vive o Brasil é gritante. Apesar do caráter ainda muito obtuso da Operação Carne Fraca, não é difícil identificar as fragilidades que ela representa. Se realmente houvesse preocupação com a saúde dos consumidores, a Operação teria desmantelado a quadrilha, prendido os responsáveis e não levaria sete anos para revelar as irregularidades. Mas não é essa a questão. Estados europeus tratam irregularidades de suas empresas com o mesmo alarde? Claro que não. O sigilo que eles cultivam não guarda relação com a saúde dos consumidores e muito menos com o zelo social. É sigilo estratégico. Enquanto isso, o que vem acontecendo no Brasil? Por que a Operação foi revelada somente agora? Essas questões demonstram que guerra econômica não acontece apenas no campo bélico.

Além dos setores petrolífero e da construção civil, há uma evidente investida contra mais um setor econômico do país. Outras virão. A guerra também acontece na arena nacional e nela, não resta dúvida, há um orquestramento externo com engenhoso apoio de agentes internos em função de disputas capciosas. E como a mídia hegemônica é literalmente vendida, joga junto e ajuda a promover o desmonte. Essas questões não podem ser desconsideradas. Mesmo assim, é momento - sempre tarde, todavia necessário - de pautar o desenvolvimento territorial do país e a discussão sobre a insustentabilidade do atual modelo produtivo. Se, por um lado, um grupo representa os interesses externos – o que está evidenciado na atual conjuntura político-econômica, por outro, há aqueles que não conseguiram ultrapassar, por conveniência, os interesses de um capital que ainda se juga nacional, mas que há muito deixou de ser. A tática do entreguismo tem revelado a total fragilidade da política econômica nacional e deixado o país ainda mais submisso aos interesses externos. Apesar de breves, essas questões servem para suscitar o debate, demonstrar as falácias do agronegócio como sustentáculo do país e evidenciar a miséria da política econômica nacional tanto na escala global como local. Servem para mostrar que não é apenas a carne que é fraca, é o Brasil que joga mal.

 

*Denis Castilho é doutor em Geografia e professor da Universidade Federal de Goiás

 

Referências

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 2006 - Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação. Rio de Janeiro: IBGE, 2006. 777 p. Disponível em: https://goo.gl/vPpIqQ. Acesso: 19 mar. 2017.

QUADROS, Vasconcelos. Brasil consome 14 agrotóxicos proibidos no mundo. Portal IG, 24 fev. 2014. Disponível em: https://goo.gl/rsklMK. Acesso: 19 mar. 2017.

 

Territorial, Vol.7, n.9, 20 de março de 2017. [ISSN 22380-5525].