“NARRADORES DE JAVÉ”: LIÇÕES E LEITURAS CULTURAIS - Avacir Gomes dos Santos Silva & Thiago Aparecido de Oliveira Santos
Fonte: www.planocritico.com (acesso em 20 jan. 2018).
A exibição de filmes é um excelente recurso didático, pois oportuniza aos aprendizes o acesso aos conteúdos ou temáticas relacionadas as ciências humanas: sociedade, cultura, geografia e história de maneira mais dinâmica e interativa.
Por meio da análise da forma e do sentido de um filme o docente poderá indicar sugestões heurísticas interessantes, capazes de propiciar uma consciência crítica e global da sociedade, além de desenvolver a interligação das dinâmicas temporais entre o passado, presente e as projeções futuras. O filme Narradores de Javé (Direção de Eliane Café, 2003) é uma dessas fontes inesgotáveis de lições humanas.
No Curso de Pedagogia a grade curricular contempla a disciplina “Sociologia”, assim, sempre que possível faço uso do filme como recurso didático a fim de propiciar uma melhor compreensão dos conteúdos. Como atividade prática os alunos escolhem um filme para assistir, obrigatoriamente, no cinema. Pois, a emoção do filme na “telona” é bem diferente da exibição em Datashow em uma sala de aula ou sala de vídeo. Sem contar, que por incrível que pareça, na nossa região, para uma parte significativa de acadêmicos, essa será a primeira oportunidade para assistir um filme cinema.
A proposta do filme como recurso não se finaliza com a ida dos alunos ao cinema. Depois disso, o professor propõe a turma intervenções didáticas, por meios das quais os alunos irão mobilizar os ensinamentos do filme com os conteúdos desenvolvidos numa dada disciplina, seja na educação básica ou na superior.
Este escrito tem por objetivo apresentar o resultado de uma atividade didática proposta a turma do Primeiro Período de Pedagogia, a partir da Disciplina Sociologia e dos estudos da obra: Sociologia Geral de Lakatos e Marconi (2011).
Para o entendimento do conceito de cultura as referidas autoras apresentam quinze categorias de analise: conceito, essência, relativismo, etnocentrismo, traços, complexos, padrões, configurações, áreas culturais, folkways, mores e leis, mudança cultural, difusão, aculturação e endoculturação.
A proposta a partir dessas categorias foi a turma assistir ao filme Narradores de Javé é relacioná-lo com as contribuições teóricas de Lakatos e Marconi. Dos escritos realizados pelos alunos, o produzido pelo acadêmico Thiago Aparecido de Oliveira Santos apresentou uma análise brilhante. Assim, propus que socializamos por meio de um texto as interligações que ele pontou entre o suporte fílmico e teórico.
Para maior compreensão da proposta da atividade apresentamos uma sucinta contextualização do filme. Javé está com os dias contados. O povoado será inundado com a construção de uma usina hidrelétrica. Os moradores se apegam à última esperança: a escrita do Livro da Salvação. Por meio do exercício da memória as pessoas passam a narrar suas histórias, as quais devem ganhar o suporte da escrita para ser consideradas como patrimônio de valor científico.
O que parecia ser a salvação transforma-se em outro problema. Quem, numa comunidade que tem apenas a oralidade como forma de expressão irá escrever a histórias que os moradores precisam contar? Eis que entre em cena Antonio Biá (José Dumont), o nosso Homero do sertão brasileiro.
O filme “Narradores de Javé” é uma Lição para os hermeneutas sociais que pretendem trilhar as veredas das narrativas orais. O que história oral procura nos ensinar partir dos pressupostos teóricos sobre: memória, tempo, narrador, transcriação e narrador pleno os narradores de Javé nos ensinam com graça, mesquinharias, humor, intrigas, poesia, fofocas, sonhos, protestos, paixões, traumas, ditados populares, desamores, cumplicidades, traições, devires e esperanças.
Apresentamos em seguida uma das possibilidades de leitura do filme Narradores de Javé por meio do conceito de cultura ou vice-versa. O conceito de cultura destacado por Lakatos e Marconi concentra-se na seguinte ideia: cultura compreende ideias, crenças, valores, normas, atitudes, padrões de condutas, abstração de comportamento, instituições, técnicas e artefatos, constitui-se assim em elementos tanto materiais como imateriais.
O conceito de cultura, apresentado de forma generalizada pelas autoras, pode ser relacionado com o modo de vida do povo de Javé, comunidade ribeirinha, que tem a oralidade como forma de manifestar suas crenças, valores, costumes, comportamentos os laços de parentesco e o sentimento de pertença ao lugar da ribeira.
A ideia da essência da cultura segundo Lakatos e Marcone, são “concepções mentais de coisas concretas ou abstratas”, como por exemplo, “línguas, arte, mitologia”. No filme, pode-se perceber estes elementos a partir das histórias contadas pelas pessoas da comunidade, as lendas sobre a fundação do vilarejo, do heroísmo presente nos personagens e bagagens históricas e sobrenaturais, traçados no discurso de cada morador.
O relativismo cultural refere-se aos padrões de vida particular, o que é certo ou errado, ações e valores, a partir da compreensão interna de cada grupo cultural. O relativismo só pode ser percebido no contato entre grupos diferentes. O elemento que marca esta categoria teórica no filme é a forma de apropriação das terras, por meio das “divisas cantadas” ou “terras apalavradas”. Cada indivíduo cantava o pedaço de terra que dava conta de cultivar. Desta forma a personagem Maria Diná demarca o território de Javé: “no rumo do cruzeiro do céu até onde a vista alcança, há de ser terra nossa, nesse contrário de rumo até onde o homem possa andar o dia inteiro de marcha, há de ser terra nossa, nesse rumo onde acaba o vale, isto é Javé. Aqui, criaremos nossos filhos com a dureza da pedra”.
Etnocentrismo, de acordo com Lakatos e Marconi, “significa a supervalorização da própria cultura em detrimento das demais”. A principal razão da produção das provas científicas, segundo Zaqueu, o narrador da história, seria para impedimento da construção da usina, a qual alagaria toda a cidade Este fato retrata a supervalorização de outra cultura, os projetos de desenvolvimento econômico, que não consideram a vida, a história e a cultura dos moradores de Javé.
Os traços culturais “consistem no conjunto de traços ou num grupo de traços associados, formando um todo funcional”. É possível destacar no filme o sino da igreja com o traço cultural principal da comunidade de Javé. As batidas do sino, por exemplo, é uma forma de reunir as pessoas, a igreja passa a ser o centro aglutinador.
Complexos culturais, “cada cultura engloba um número variável de complexos inter-relacionados [...] exemplo: o carnaval brasileiro, que reúne um grupo de traços ou elementos relacionados entre si”. As práticas religiosas do povo de Javé constituem um complexo cultural formado pelos traços religiosos como o sino, as procissões, as reuniões na igreja, a manifestação de fé, que se interligam a vida cotidiana dos moradores.
Lakatos e Marconi definem padrões culturais como resultante do agrupamento de complexos culturais, de um interesse ou tema central do qual derivam o seu significado. A escrita do tal livro da salvação cria um comportamento em torno de um ideal comum, as pessoas da localidade desejam ter suas histórias registradas para a posteridade, assim cada uma delas passa a narrar o mito fundador a partir, que conduziu o povo até o Vale do Javé, a partir da referência pessoal de um antepassado.
“A Integração de diferentes traços e complexos de uma cultura”, de acordo com Lakatos e Maconi caracteriza as configurações culturais. Podemos indicar vários sinais de configuração no filme, com por exemplo: o rio, a religiosidade e a oralidade são traços culturais que configuram a cultura ribeirinha.
A áreas culturais podem ser relacionadas tanto pelos elementos geográficos, quanto a existência dos bens materiais, com padrões de comportamento relativamente iguais. É o caso de Javé, uma localidade com poucos habitantes, cuja a maioria apresenta padrões iguais de comportamento quanto a forma de expressão oral, as crenças, as vestimentas e a construção das moradias, dispostas em linha reta ao longo da beira do rio.
A subcultura é vista no senso comum como algo de menor valor. Esta percepção é uma forma de pre-conceito. Para Lakatos e Marconi a subcultura não possui conotação valorativa, mas deve ser concebida como “um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de uma sociedade maior”. Na sociedade de Javé existe o grupo menor formado pela comunidade quilombola. Esta é visitada por Antônio Biá para registrar a história do grupo no livro da salvação. O líder da comunidade também narrar a origem do mito fundador a partir do personagem Indáleo, seu antepassado, que guiou o povo da África até o Brasil.
Quanto as categorias folways, mores e leis, segundo as autoras, o primeiro, relaciona-se as convenções e padrões de etiqueta, os mores tem caráter ativo e seu controle pode ser consciente ou inconsciente. As leis são regras de comportamento formuladas deliberadamente ou imposta por uma autoridade especial”. No filme os folways podem ser indicados a partir do comportamento das pessoas, que falam mal uns das outras de forma dissimulada. O que Bia revela por meio da escrita das cartas.
Os mores são expressos no costume dos moradores em contar suas histórias tendo como herói um membro da própria família. As pessoas de Javé expulsam Bia do convívio social ao descobrirem as “mentiras” por ele inventadas nas cartas, para garantir o emprego na agencia dos correios. Assim, expulsam Bia, por meio de uma lei deliberada a fim de manter o equilíbrio social do grupo.
A mudança cultura destaca-se em função de qualquer alteração surgida em um grupo cultural. No caso da película, os moradores de Javé vivenciam uma mudança cultural a partir do momento em que a escrita, num grupo ágrafo, transforma-se na única possibilidade de garantia da própria existência. A imposição da escrita sobre a oralidade, não basta que as histórias javélicas estejam na memória povo é preciso que elas ganhem formato de produção científica.
A difusão cultural, segundo as autoras é um elemento evidente na maioria das civilizações, tanto de forma unilateral ou por meio das troças. Quando Antônio Biá chega na comunidade dos quilombos um negro está sentado de baixo de uma árvore tocando um acordeão, instrumento comum nas manifestações culturais do sul do país, que chegou por estas plagas por influência portuguesa.
A aculturação é o processo de fusão de duas diferentes culturas, que entrando em contato contínuo, originam mudanças e padrões da cultura de ambos os grupos (LAKATOS, MARCONI; 2011). Este conceito não é percebido no filme Narradores de Javé, pois o cenário e enredo se desenvolvem apenas em uma única área cultural.
Por fim, o último conceito apresentado pelas autoras é endoculturação, definido como os processos de aprendizagem e educação, que envolve cada indivíduo desde a mais tenra infância, por meio das crenças, comportamentos, os modos de vida da sociedade do seu grupo social. Este fenômeno é retratado pelo personagem de Antonio Biá. Ele está tão inserido na cultura javélica a ponto de poder não apenas vivê-la, mas pensar, criticar e escrever sobre o modo de vida do seu povo.
Eis, uma possibilidade de leitura do filme Narradores de Javé. Outras tantas mil possibilidades de lições podem ser pensadas, para que o docente possa mobilizar situações de aprendizagens no chão da sala de aula.
Referências Bibliográficas
CAFÉ, Eliane. (Direção). Narradores de Javé. 2003. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Trm-CyihYs8>. Acesso em 26 de dez, 2017.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Sociologia geral. 7.ed. São Paulo: Atlas, 2011.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
Avacir Gomes dos Santos Silva
Professora do Curso de Pedagogia, Campus Rolim de Moura, Universidade Federal de Rondônia.
Thiago Aparecido de Oliveira Santos
Acadêmico do VII Período do Curso de Pedagogia, Campus Rolim de Moura, Universidade Federal de Rondonia.
Ficha bibliográfica:
SILVA, Avacir Gomes dos Santos; SANTOS, Thiago Aparecido de Oliveira. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 8, nº. 10, 26 de março de 2018. [ISSN 22380-5525]