O PÃO E O PÁTIO - Matheus Feliciano dos Reis

01/08/2019 20:20

Foto: Matheus Feliciano dos Reis (2018).

 

A experiência do estágio na escola, para a formação de professores, certamente prevê uma miríade de acontecimentos que marcam essa etapa de diferentes maneiras. A escola, nesta fase, guarda a dimensão do aprender pelo ensinar, e atribui ao jovem professor a construção de uma nova identidade que, em seu treinamento, na verdade muito evoca os seus dias mais pretéritos. Algumas das situações, assim, guardam um sentido mundano, corriqueiro, que em sua prosaica profundidade tornam as suas crônicas tão dignas quanto as liras épicas. Narremos uma delas.

Diariamente é servido lanche na cantina da escola, durante o intervalo. Nos dias em que ali estive, foi possível perceber dois tipos de movimentação no pátio coberto de educação física e atividades culturais, onde se encontra a cantina: longa fila de alunos para pegar o lanche, ou uma pequena fila. Isso, logo tornou-se claro, não pela mudança na disposição dos alunos em se alimentar, mas na variação do cardápio.

Naturalmente, nos dias de maiores filas, havia sempre uma recompensa apetitosa para aqueles que sacrificaram metade do tempo de seu intervalo aguardando na longa linha. Nesses dias, os alunos que saíam vitoriosos desse empenho carregavam consigo pequenas cumbucas de plástico. Em uma ocasião, estavam preenchidas de uma pequena porção de estrogonofe, e noutra, de macarronada. A possibilidade de servir-se de um desses calorosos consolos nas manhãs mais frias de maio foram sedutoras da mesma forma para os estagiários, e não hesitamos, nesses dias, de procurar saciedade na mesma fonte.

Essa expectativa, no entanto, foi seguidamente frustrada. O encerrar da aula no 6º ano A,          quando a sirene já ecoava o início do intervalo, era momento de acompanhar o professor até fora da sala, ouvir suas considerações sobre a aula e na maioria das vezes, caminhar com ele todo o trajeto até seu departamento – onde ele poderia se suprir de seus aperitivos e café. Durante o caminho, assombrava a vista da rampa por onde corria a horda veloz rumo à cantina, logo ao evadir a sala de aula, e se anunciava más notícias para o forro das entranhas: a fila se estende por toda a quadra.

A situação como tal poderia ser encarada de duas maneiras: dirigir-se ao fim da fila ou dirigir-se a outro assunto. A primeira tentativa é vã, considerando que rapidamente se esgota o lanche especial, e mesmo muitos dos que já aguardavam na fila têm seu tempo desperdiçado quando sinaliza o cozinheiro, com um aceno indiferente, que já são lavadas as panelas. Justifica-se aí a pressa de muitos alunos do 6º A em se retirar da sala quando toca a sirene, e de protestarem resolutos quando o professor insiste em terminar sua fala interrompida pela hora.

Para completar, muitos dos adiantados tornam à fila para repetir a refeição, o que é facilmente notado naqueles que já portam os vasilhames. O desvanecer das chances de nutrição e o desespero fisiológico, quando avançados, já me levaram ao outro lado da escola, na entrada mais próxima à parada de ônibus. Ali, oficialmente fora do perímetro mas efetivamente parte da escola, se encontra a pequena banca, onde o fraterno “tio” pechincha uma série de quitutes cuja clientela indisputada são os infantes da 1ª fase do Ensino Fundamental. Eles se amontoam como pássaros por migalhas, do outro lado da cerca de arame, estendendo os braços e apertando nas mãos notas amassadas, chamando em coro pela atenção do varejista, que se desdobra admiravelmente para atender a todos os pedidos. Balas e “geladinhos” parecem ser os artigos mais desejados. Os pequenos também têm seu lanche do lado de lá, mas parecem não resistir ao apelo do açúcar.

De volta ao pátio dos maiores, alvorece outro dia e outra chance de satisfação. Quando a fila não intimida, contudo, o lanche não encanta. Já nos frustrou também não a escassez de merendas, mas a abundância de maçãs ou de pedaços de melancia que simplesmente não apetecem aos jovens. Nesses casos não há fila alguma, um ou dois estudantes se servem das frutas, mas elas continuam ali, intocadas pela maioria. Noutro dia foram servidas bolachas de coco, à granel - todavia de maneira um tanto desencorajadora: várias mãos, cada qual com seus mistérios, visitavam o saco e remexiam seu conteúdo antes de saírem cheias.

Nem tudo foi derrota, porém, e já houve tempo de engajar na fila e sair dali com a intrepidez recompensada. No fim da linha, quase fora da quadra coberta, estava um grupo de adolescentes mais velhos, provavelmente do Ensino Médio. Era uma afastada roda de futebol, em que eles gingavam a bola entre si, com uma agitação agressiva que anunciava a qualquer momento o desvio de trajetória e uma fatal bola perdida de encontro àqueles que esperavam na fila ao lado. Nessa altura era comum se dar conta que a fila havia andado e não tê-la acompanhado, concentrado como estava na visão periférica a fim de prever um golpe desavisado.

Como é comum, também na escola foi possível observar aqueles velhos amigos, que se encontram no meio da fila para um cumprimento e uma conversa, e acabam permanecendo por opção, acompanhando-a até o início e favorecendo-se de um lanche também, se permitir o acaso. Há, no meio do pátio, um grande tatame estendido no chão, e nesse ponto da fila lá estavam os mais impúberes da 2ª fase, com imensa energia dispendida em piruetas e cambalhotas, muitos já com o lanche em mãos, que até então permanecera incógnito: pão com carne moída. Um espetáculo semelhante era o dos símios, típicos do bairro, escalando aflitos as passarelas com um ou dois desses sanduíches nas mãos primatas.

A especialidade da casa é servida pelos funcionários da cozinha em uma janela tornada em balcão, que atende um por vez aos que aguardam na fila estreita. Os ânimos se intensificam por um instante quando um dos professores se dirige diretamente à murada e retira o seu lanche, com as regalias de sua autoridade. Seus alunos que aguardam na fila o provocam e ele o faz de volta, mas tudo não passa de uma grande brincadeira, uma cena certamente quotidiana - ou pelo menos quando vale o petisco.

Já próximo à janela, um grupo de meninas se reúne em torno de uma mesa onde toca alto um sistema de som, e ali elas dançam ritmos modernos. Mais à frente, há uma grande mesa de concreto, onde outros adolescentes, desinteressados ou já acabados com o lanche, permanecem aninhados. O resto dos estudantes orbita o pátio nas bancadas que cercam a quadra ou caminham pelos gramados. A visão que encerra inspira reflexões. Há muitos grupos diferentes no mesmo espaço, alguns se misturam e outros se mantêm exclusivos. Há, entretanto, uma harmonia coletiva na escola que paira no ar, um tipo de entendimento mútuo entre os alunos, uma noção de pertencimento à escola que faz daquele espaço verdadeiramente universal. O pátio é dos alunos, e ali não estava nenhum monitor ou qualquer olhar inquisitivo. Mesmo eu, como forasteiro, senti-me ali no meio da fila de volta aos meus dias de escola. Quando não usei o crachá, misturei-me facilmente, e raramente recebia qualquer olhar de estranhamento. Ao chegar a minha vez na fila, fui servido sem hesitação, e tomei o lanche como um deles.

Findou a espera, e neste dia, tomei o pão como alimento. Parecia antes mais saboroso do que realmente era.

 

Matheus Feliciano dos Reis

Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Goiás

E-mail: theustalk@gmail.com

 

Ficha bibliográfica:

REIS, Matheus Feliciano dos. O pão e o pátio. Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.9, n.11, 01 de agosto de 2019. [ISSN 22380-5525].