O PAPEL DA ESQUERDA NO DIREITO À CIDADE - Márcia Cristina Hizim Pelá
Iniciarei este texto definindo o que entendo por esquerda na atual conjuntura. Esquerda, para mim, é toda ação e relação que prima pela inclusão social, econômica, cultural, étnica. Ou seja, que tem como finalidade a distribuição mais proporcional da produção social. E a cidade, enquanto produção social que é, deveria ser pensada, concebida e organizada a partir desse pressuposto de inclusão.
Penso que dessa forma, como bem já anunciou Henri Lefebvre(2004)[1], é que se alcançara o direito à cidade. Uma cidade que é concebida, percebida e vivida como obra humana e não, apenas, como mercadoria.
A lógica da mercadoria é a lógica da produção do espaço e, consequentemente, da estrutura urbana, desigual, concentrada e privativa, em que as relações são completamente díspares, uma vez que elas são planejadas a partir da famosa correlação de força 4X1: os proprietários dos meios de produção; os proprietários fundiários; os promotores imobiliários; o Estado e os grupos sociais excluídos, conforme aponta o geografo Roberto Correa Lobato (1995)[2].
Esta lógica é que produz a segregação socioespacial e a concentração de riquezas das e nas cidades nas mãos de uma minoria. Um exemplo concreto disso são como hoje está distribuído a renda e a população em Goiânia, Brasília e Palmas -as três cidades-capitais planejadas no Cerrado, conforme pode-se verificar nas figuras 1 a 6.
Figuras 1 e 2 – Densidade demográfica de Goiânia em 2010 e Espacialização da renda da população goianiense
Figuras 3 e 4 – Densidade demográfica de Brasília em 2010 e Espacialização da renda da população brasiliense
Figuras 5 e 6 – Densidade demográfica de Palmas em 2010 e Espacialização da renda da população de Palmas
O que essas figuras podem nos dizer:
1º - que o discurso da falta de planejamento é uma falácia, pois essas cidades-capitais foram pensadas, concebidas e planejadas. Há planejamento sim, mas um planejamento que favorece quem concentra e gere o capital. E hoje, o nome já está substituindo o planejamento pelo ordenamento de território.
2º - que nessa lógica da cidade mercadoria a ideologia permite criar uma cortina de fumaça, em que o qualitativo escamoteia o quantitativo, uma vez que os grupos sociais excluídos, que são a maioria quantitativa, transformam em minorias qualitativas. Ou seja: as periferias das três cidades-capitais são os locais que se encontra o maior número de seus habitantes em uma menor porção do território. É obvio que nesses locais há um maior adensamento territorial e que, consequentemente, contribui para gerar os famigerados problemas urbanos como mobilidade, violência etc. Esse fator além de auxiliar para criar uma visão depreciativa da periferia e de seus sujeitos, também influencia no processo de exclusão socioespacial. É o que chamamos da tentativa de controle material e imaterial do movimento na e pela cidade.
3º- que os grandes problemas urbanos como a mobilidade, a violência urbana, a falta de moradia digna, o espaço privado em detrimento do público são consequências de uma lógica que antecede a estrutura urbana, uma vez que os problemas urbanos são frutos das relações de produção da sociedade capital e, portanto, da produção social do espaço. Por isso, precisamos voltar nossa lente para o processo e não, apenas, para o resultado final.
Desse modo é que, incluir a partir das relações estrutura e lógica, que estão postas, é quase impraticável. Não há como resolver as questões apenas pelo discurso ou por migalhas de ações que tendem a escamotear e apaziguar os conflitos e as contradições que foram e são gerados pela lógica da cidade como mercadoria.
Nesse sentido é que o discurso da inclusão que é utilizado por parte de setores que se dizem progressistas, entre eles o atual governo, é quase que esquizofrênico, haja vista que são desconectados, ou melhor, são contrários com as suas ações. O discurso até se aproxima de uma postura de esquerda. Contudo, as ações são implementadas a partir da lógica da cidade como mercadoria. E o pior, é que criam uma situação de amortecimento do movimento social que é coagida em nome de uma falsa garantia de governabilidade.
Ora, o que se vê é um engessamento das ações dos gestores na superestrutura. Engessamento esse que nada mais é que implementação de uma política desenvolvimentista que, alicerçada no falso discurso do novo, do moderno, do futuro, da diferença etc, tenta aniquilar e escamotear qualquer tentativa de transformação nas estruturas materiais e imateriais da nossa sociedade.
Exemplo disso são os megaeventos, como a copa do mundo que expropriou famílias de seus lugares, alterou lugares e os entregou para as grandes corporações. É Belo Monte, o agronegócio, a constante disputa que é alimentada entre as cidades no intuito de as transformarem em espaços de consumo. Impõem uma cultura da cidade High-tech, a cidade da era da globalização, onde as formas tentam sobrepor e subjugar os sujeitos. Tentam nos transformar em meros consumidores do espaço.
Esse processo além ser de desumanização, pois coisifica ainda mais a nossa condição humana, captura nossos sonhos, nossas esperanças, elimina a utopia e, o pior, cria uma sensação que não há como alterar o que está posto. Também tende a escamotear a contradição e substitui-la com a errônea ideologia da cidade como caos.
Errônea porque - tanto a visão da perenidade quanto a visão da cidade como caos - são visões pessimistas, caóticas e unilaterais que além de apresentarem a cidade apenas como mercadoria, um ‘beco sem saída’, ingovernável, também invisibilizam a luta dos marginalizados, as outras formas de ocupação da cidade e a própria contradição que é inerente a sociedade capitalista e, consequentemente, a produção do espaço.
A cidade, como representação pratico-sensível das ações e relações humanas, medeia a inovação com as coisas do lugar e o faz expressando os problemas do modo de produção, como o desemprego estrutural, os problemas ambientais, a fome, a violência etc. Por isso, não há caos, há contradições que fazem parte de um ordenamento social.
E é exatamente aí que penso que nasce o papel da esquerda no direito à cidade. Desvelar o produto final a partir do processo. Demonstrar e respaldar que há outras formas de ações e relações na sociedade, em especial nas cidades, que alteram essa lógica da cidade enquanto mercadoria.
Pois, existe sim um outra ordem nas cidades que vai além dessa imposta e implementada pelo capital e seus gestores. Outra ordem, que cresce no bojo das contradições e que, de uma maneira ou de outra, se materializam nos contornos e nos conteúdo das cidades contemporâneas. É o movimento dos excluídos socioespacialmente e expropriados economicamente para garantir a partir da resistência e da (Re)existência um lugar ao sol nas cidades.
Precisamos discutir as cidades a partir dos seus sujeitos sociais e não, apenas pelas suas formas ou problemas. É preciso compreender que a cidade, enquanto obra humana é produto e produtora das nossas ações e relações. Ela nos transforma, tão quanto nós as transformamos. É a relação dialética que o trabalho, no seu sentido ontológico, nos permite experienciar. As cidades não são sujeitos, são obras construídas e transformadas pelas ações e relações humanas.
Para isso é necessário compreender que a superestrutura e a infraestrutura não são hierárquicas, mas dialética. Nessa perspectiva conseguimos compreender que as práticas socioculturais estabelecidas e vivenciadas no cotidiano pelos grupos excluídos são tão importantes na compreensão da dinâmica socioespacial como a economia e as relações de produções. Isso porque, as práticas socioculturais evidenciam o espaço vivido e, por isso, nos possibilitam perceber e compreender que há uma outra ordem sendo construída e vivenciada nas cidades pelos sujeitos sociais.
São instrumentos de transformações que nos aproximam e demonstram que há uma contraposição da hegemonia da cidades como mercadoria. Exemplo concreto são como os sujeitos excluídos, que eu chamo de não desejados nos espaços privilegiados, se relacionam e ocupam os espaços.
Basta andar nas ruas dos bairros da periferia proletária que é possível percebe esta asseveração, uma vez que, diferentemente das ruas dos espaços privilegiados que carrega a intencionalidade da circulação dos carros e do vazio dos passos, estas são mais ocupadas pelos seres humanos do que pelos carros.
As figuras 7 e 8, que retratam o cotidiano de vida dos moradores da Vila Mutirão e Jardim Curitiba, em Goiânia, das RAs de Ceilândia e do Varjão, em Brasília, e de Taquaralto e das Arenys, em Palmas, auxiliam nesta afirmação.
Figura 01 e 2: Cotidiano de vida nas periferias proletárias de Goiânia, Brasília e Palmas.
Fonte: fotografias da autora (2014)
As imagens revelam que a rua, pelo menos na periferia, é ocupada pela população. E isso não é falta de desenvolvimento, mas sim uma outra forma de dinâmica socioespacial que não se concentra no shopping, nos carros, na cidade do tempo rápido - ou seja, do tempo do capital. Precisamos respaldar essas ações e, consequentemente, acabar com essa invisibilidade que só serve para fortalecer o que está hegemonicamente posto.
Por isso que, para mim, o papel da esquerda no direito à cidade, passa necessariamente por uma mudança metodológica de análise e propostas. É urgente que mudemos o método de análise das cidades, pois, só assim conseguiremos inverter a lógica de análise socioespacial de cima para baixo que coloca em evidência a forma e o produto final, irradia as desesperanças, congela a utopia e mutila as possibilidades de transformação tanto humanas como sociais. É o analisar, interferir e agir na e pela cidade a partir da sociabilidade dos excluídos e marginalizados socioespacialmente.
Márcia Cristina Hizim Pelá
Doutora em Geografia pela UFG, Professora da Faculdade
Alfredo Nasse e presidente da ONG "Cultura, Cidade e Arte".
[1] LEVEBVRE,H. O direito à cidade.São Paulo: Centauro, 3a. edição, 2004.
[2] CORRÊA, R.L O Espaço Urbano, São Paulo: Ática, Série Princípios, 3a. edição, 1995
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Ficha bibliográfica:
PELÁ, Márcia Cristina Hizim. O papel da esquerda no direito à cidade. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.6, n.8, 11 de julho de 2016. [ISSN 22380-5525].