O SOM QUE DIZ O ESPAÇO: GOIÁ E A MÚSICA SERTANEJA EM GOIÁS - Ricardo J. A. Fernandes Gonçalves
Nos últimos anos, os debates epistemológicos que fundamentam a ciência geográfica restauram antigas questões e ao mesmo tempo, também procuram construir novas matrizes teóricas e metodológicas, no intuito de forjar alternativas de apreensão do espaço e dos sujeitos, ao dialogar com outros campos do saber. Como resultado desses esforços, uma miscelânea de trabalhos se inclina sobre a literatura, o cinema e a música, fortalecendo a relação entre geografia e arte. Esse aspecto passa a permitir múltiplas possibilidades de pesquisas e leituras geográficas do espaço.
Pesquisadores como Chaveiro (2007), Almeida (2003), Amorim Filho (2008), Suzuki (2008), Corrêa (1998), Corrêa; Rosendahl (2007), Marandola Jr.; Gratão (2010) demonstram que é possível aproximar estudos científicos com a música, cinema e literatura, no sentido de contribuir para a teoria do conhecimento e ruptura com a dualidade entre espaço e sujeito. Entre esses autores, Corrêa (1998) evidencia que as músicas são expressões culturais e, como tais, possuem uma dimensão espacial.
A aproximação entre Geografia e música (apenas no quesito letra, embora se sabe que os componentes da canção como arranjo, harmonia, ritmo etc., também produzem sentido), é um importante recurso metodológico nas análises geográficas do espaço. Neste pequeno texto, inicialmente enfatizamos que o sertanejo compõe a cultura e o território goiano, e a música sertaneja é uma das suas principais manifestações culturais. A partir disso, demonstramos que a carreira artística e as músicas do poeta e compositor Gérson Coutinho da Silva – o Goiá – além de exercer influência na música sertaneja em Goiás, também podem contribuir para a leitura do espaço pelos geógrafos.
O sertanejo resulta da relação histórica do seu povo com o lugar onde vive, trabalha e reproduz sua cultura. Por isso, antes de tudo o sertanejo é um modo de vida estreitamente ligado ao mundo rural. Borges (2012) defende em suas pesquisas que a matriz do sertanejo em Goiás é a denominada Fazenda-roça goiana, entendida como a organização espacial que especifica a estrutura socioeconômica de Goiás entre meados do século XVIII e metade do XX.
Esse pesquisador diz que a Fazenda-roça em Goiás constitui o território onde o sertanejo se consolidou enquanto modo vivendi. Mesmo diante da modernização capitalista do campo e da urbanização em Goiás, o jeito sertanejo de ser está impregnado nas crenças, nas festas populares, no corpo, na linguagem e nas ações cotidianas. Também podemos dizer que a marca do trabalho rural (e de classe) está grafada no rosto deste povo, sejam os que vivem no campo ou na cidade.
Goiás é o território cuja cultura e trabalho de sua população se consolidam aglutinando um estuário de símbolos e signos da identidade sertaneja. Um dos desdobramentos desse fato é a notável incorporação do modo de vida sertanejo na literatura, no cinema, na culinária, na pintura, na música, no folclore, na dança e nas artes de forma geral.
Na literatura a obra Sertão sem fim, de Bariani Ortêncio, assim como tantos outros exemplos, revelam elementos da reprodução social da existência sertaneja no território goiano. Mas, talvez seja a música sertaneja em Goiás um dos elementos que mais intensamente incorporou as sociabilidades do povo goiano. Ela difundiu seus sonhos, seus amores e paixões, os aspectos do trabalho e da vida rural, assim como a saudade e o lirismo relacionados a vida no campo, revestida de uma certa espontaneidade e ordem natural das coisas.
Através de suas composições, artistas da música sertaneja como Goiá, também foram capazes de revelar a violência da expropriação por meio da modernização conservadora da agricultura[i], fornecendo possibilidades de ler o espaço, os sujeitos e as contradições no campo.
Nesse contexto a música sertaneja de raiz ganhou força, especialmente nas décadas de 1950 a 1980, quando as populações camponesas se defrontaram com o acirramento dos conflitos no mundo rural. Caracterizado por um espaço e tempo peculiar, a partir da década de 1950 milhares de camponeses chegaram aos centros urbanos trazendo no íntimo, as lembranças e memórias, modos de vida e sentimentos de nostalgia, que foram incorporados nas composições dessa época. Elas tocavam na memória coletiva do povo goiano que se emocionavam (emocionam) com as descrições poéticas representando um espaço uno e múltiplo – o sertão – lugar de reprodução da sociedade sertaneja e que já estava sendo ressignificado diante das transformações em curso na segunda metade do século XX.
Ao mesmo tempo, a música sertaneja também surgiu como produto dessa mistura entre a vida rural e o processo de modernização e urbanização, que implicou na correlação das canções com o aparato técnico-científico introduzido pela racionalidade moderna. Em Goiás, a sua capital - Goiânia - foi e é um dos espaços por excelência para a reprodução e consumo da música sertaneja.
Migrantes, trabalhadores e expropriados da terra passaram a viver na capital goiana e nela introduziram as marcas simbólicas e culturais da vivência sertaneja, cuja manifestação mais evidente pode ser encontrada na música, que ao longo dos anos se difere em termos de sentido, estilo e composição. Mas, a música sertaneja de raiz ainda faz parte de milhares de goianos, ela compõe a memória social da nossa população e ainda inspira e influencia as novas gerações de músicos.
Acredita-se que a música sertaneja possui um rico legado cultural que permite aproximações com as análises que desenvolvemos na Geografia. Um exemplo são as composições de Goiá. Apesar de não ser um cantor e compositor goiano, sua obra faz referência a esse território e seu povo.
A vida e a carreira de Goiá compõem uma surpreendente biografia artística da música sertaneja. E neste campo, pode ser considerado pioneiro em diversos sentidos. Com o objetivo de se consolidar no seio da música sertaneja, Goiá saiu de Coromandel, no interior de Minas Gerais e mudou-se para Goiânia no ano de 1953, onde permaneceu por aproximadamente 2 anos, quando então foi para São Paulo, também com intenção de seguir carreira artística.
Na capital do território goiano, Goiá estabeleceu amizade com importantes artistas como Bariani Ortêncio. Chegou a desenvolver programas na Rádio Brasil Central e com a formação do Trio da Amizade, foram os pioneiros no Estado de Goiás a gravar discos em São Paulo. Esse percurso resultou na gravação de dois discos com 78 RPM (rotações por minuto) na antiga Colúmbia.
Goiás e Goiânia tornaram-se também temáticas sempre constantes em suas composições. Entre elas, destaca-se Saudade de Goiás, onde diz “Goiás é saudade em tudo que falo”, e cita o artista Bariani Ortêncio e seu livro Sertão sem fim, ao se referir ao Lago das Rosas e até das noites em Campinas (hoje região metropolitana de Goiânia). Outra música é Visita a Goiás. Nela faz referência ao Bazar Paulistinha, às fazendas goianas e ao Rio Araguaia.
Podemos afirmar com garantia que a presença de Goiá no cenário artístico da música sertaneja é, sem dúvida, uma referência central neste gênero e um de seus principais inovadores. Ele procurou dar nobreza artística ao estilo, utilizando a linguagem gramatical correta na composição das letras, assim como buscou a inovação das temáticas.
Ortêncio (2004, p.26), além de sintetizar que Goiá é um dos precursores do disco goiano, diz também:
Goiá foi um marco, foi o pioneiro compositor a fazer letras em português correto, fugindo do caipirismo, até então comum em todas as composições sertanejas. Dizia que quem ouve música também aprende, e quem aprende deve aprender certo. Teve muita razão. Teve muita razão, porque o Brasil tinha Boneca cobiçada, de Biá, com linguagem também correta, dando prosseguição a outras composições sem o linguajar caipirista.
Em suas letras chegou a incorporar discursos delicados em plena Ditadura Militar, como na música A grande esperança (ou Reforma Agrária). Nesta música, que se tornou uma espécie de hino dos movimentos sociais em luta pela terra na década de 1980, defende a importância da reforma agrária e tece críticas ao capitalismo e aos mecanismos de exploração do trabalhador rural e urbano, como pode ser observado abaixo.
A classe roceira e a classe operária,
Ansiosas esperam a Reforma Agrária,
Sabendo que ela trará solução,
Para a situação que está precária.
Saindo o projeto do chão brasileiro,
De cada roceiro, plantar sua área,
Sei que na miséria ninguém viveria,
Se a produção já aumentaria,
Quinhentos por cento até na pecuária.
Esta grande crise que a tempo surgiu,
Maltrata o cabloco, ferindo seu brio,
Dentro de um país, rico e altaneiro,
Morre brasileiros de fome e frio.
[...]
O nosso roceiro vive num dilema,
E o seu problema não tem solução,
Porque o ricaço que vive folgado,
Acha que o projeto se for assinado,
Estará ferindo a constituição.
[...]
Que eles não deixem o capitalismo,
Levar ao abismo a nossa nação,
A desigualdade que existe é tamanha,
Enquanto o ricaço não sabe o que ganha,
O pobre do pobre vive de tostão.
O tema da reforma agrária também está presente em outras letras como Homenagem ao presidente e Lei Agrária.
Além disso, em dezenas de composições incorporou elementos que refletiam, por exemplo, a grande migração do povo do interior brasileiro para as capitais entre as décadas de 50 e 60 do século passado, assim como a vida no campo e as tradições da população rural (congadas, folias de reis, catiras etc.). Também abordou temáticas como a poluição dos rios, a riqueza da fauna e flora do Cerrado, o desmatamento desse Bioma e chegou a incorporar o debate ambiental em suas músicas.
Na música Poluição, por exemplo, Goiá problematiza os problemas ambientais contemporâneos:
Socorro Jesus Cristo, nossa flora está morrendo,
Nossa fauna está perdendo seus espécimes mais raros;
Destroem nossa terra, seus recantos e castelos,
Patrimônios dos mais belos, importantes e tão caros.
Florestas seculares estão sendo devastadas,
Nossas águas maculadas pela sanha industrial,
Não sendo encontrada outra forma mais viável,
Será a morte inevitável para o mundo animal.
[..]
Que imagem tenebrosa, um planeta ressequido,
Pobre astro já perdido pelo cosmo a vagar;
Sem rios, sem lagos, sem flores e cerrados,
E os terráqueos sufocados na poluição do ar.
[..]
Aos interesses próprios, muita gente se apega,
E o mundo já não nega, esta triste realidade;
Alguns compatriotas são piores que serpente,
Concorrendo lentamente para o fim da humanidade.
Mas, foi o caminho da saudade que compôs a força de seu lirismo. Suas composições é um canto telúrico na riqueza singela dos versos. Enquanto conhecidos artistas como Vinicius de Morais e João Gilberto cantavam “Chega de saudade”, e chamavam a atenção ao excesso de saudosismo na Música Popular Brasileira (MPB), Goiá, assim como outros artistas da música sertaneja, reiterava por meio de suas composições que a saudade é um elemento vital para a sobrevivência da memória de nosso povo.
Muitos cantam e se emocionam quando ouvem, mas, talvez poucos sabem que é de sua autoria a letra Saudade de minha terra, que foi gravada pela quase totalidade dos músicos sertanejos no Brasil. Entre os versos dessa música, ao mesmo tempo em que o sentimento de nostalgia – sempre presente na carreira e na obra de Goiá - se manifesta de maneira profunda e telúrica, o artista deixa registrado as paisagens e sociabilidades do mundo sertanejo no interior do Brasil.
De que me adianta, viver na cidade,
Se a felicidade não me acompanhar?
Adeus paulistinha do meu coração,
Lá pro meu sertão eu quero voltar.
Ver a madrugada, quando a passarada,
Fazendo alvorada, começa a cantar,
Com satisfação, arreio o burrão,
Cortando estradão, saio a galopar;
Eu vou escutando o gado berrando,
Sabiá cantando no jequitibá.
Por Nossa Senhora, meu sertão querido,
Vivo arrependido por ter te deixado;
Nesta nova vida, aqui na cidade,
De tanta saudade eu tenho chorado,
[...]
Que saudade imensa, do campo, do mato,
Do manso regato que corta as campinas,
Ia aos domingos passear de canoa,
Na linda lagoa de águas cristalinas;
Que doces lembranças, daquelas festanças,
Onde tinha danças e lindas meninas,
Eu vivo hoje em dia, sem ter alegria,
O mundo judia, mas também ensina.
[...]
A importância de Goiá é tão ampla que no início da década de 1960, quando ainda trabalhava na Rádio Bandeirantes em São Paulo, praticamente todos os músicos sertanejos desta emissora haviam gravado composições de sua autoria. Entre eles citamos: Pedro Bento e Zé da Estrada, Liu e Léu, Irmãs Galvão, Zilo e Zalo, Caçula e Marinheiro, Tibagi e Miltinho, Souza e Monteiro, Primas Miranda.
Com uma capacidade criativa rara, pouco antes de sua morte em 1981, suas letras já eram gravadas por dezenas de artistas do estilo sertanejo que se modernizava através de Chitãozinho e Xororó, João Mineiro e Marciano, Cézar e Paulinho, Milionário e José Rico, Duduca e Dalvan, Chico Rey e Paraná e muitos outros.
Retomando a proposta inicial do texto, podemos dizer que as aproximações entre geografia e música, intercambiadas pela dimensão espacial, tem a acrescentar e enriquecer essa disciplina científica. Que a posição teórico-metodológica anunciada não seja compreendida apenas no âmbito da pluralidade temática. E sim, uma nova maneira de compreender e intervir no espaço geográfico, sem perder de vista a dimensão duma sociedade justa e igualitária, tão necessária neste mundo de barbárie e violência, regido pelas contradições do capitalismo global.
[i] De acordo com Thomaz Júnior (2009, p. 188) “[...] com o atributo de conservadora, entende-se a modernização como algo capaz de conservar inalterado o espectro de desigualdades, sobretudo a concentração fundiária, não se associando sequer aos princípios das políticas compensatórias distributivistas, como também, extremamente seletiva, tendo em vista que a apropriação não é realizada por todos, mas apenas por uma minoria.”
Referências
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AMORIM FILHO, O, B. Literatura de explorações e aventuras: as “viagens extraordinárias” de Júlio Verne. Sociedade e Natureza, Uberlândia, n. 20, v.2, p.107-119, 2008
BORGES, J. C. P. A Fazenda Goiana: matriz espacial do território e do
mundo sertanejo de Goiás. 2012. Disponível em: https://www.lagea.ig.ufu.br/xx1enga/anais_enga_2012/eixos/1076_1.pdf. Acesso em: 05 de jan./2014.
CHAVEIRO, E. F. A dança da natureza e a ruína da alma: geografia e literatura – uma leitura possível. Ateliê Geográfico, Goiânia, v. 1, n. 2, p.174-186, 2007.
CORRÊA, R, L.; ROSENDAHL, Z. (Org.). Cinema, música e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2007.
CORRÊA, R, L. Geografia, literatura e música popular: uma bibliografia. Espaço e Cultura, Rio de Janeiro, n. 6, p. 59-65, 1998.
FLORES, L. R. (Org). O poeta Goiá: Coromandel – MG. Gráfica Argos, 2004.
MARANDOLA Jr. E.; GRATÃO, L, H, B. (Org.). Geografia e literatura: ensaios sobre geograficidade, poética e imaginação. Londrina: EDUEL, 2010.
ORTENCIO, Bariane. Sertão sem fim. Ed UFG, Goiânia. 2010.
______ . Goiá, um dos precursores do disco goiano. In: FLORES, L. R. (Org). O poeta Goiá: Coromandel – MG. Gráfica Argos, 2004. p.26-27.
SUZUKI, J. C. Modernidade, cidade e indivíduo: uma leitura de A Rosa do Povo. Percurso: Sociedade, Natureza e Cultura, Curitiba, n. 7, p. 23-33, 2008.
THOMAZ JÚNIOR, A. Dinâmica geográfica do trabalho no século XXI: limites
explicativos, autocrítica e desafios teóricos. São Paulo: 2009. VOLUME 1.
Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia no
Instituto de Estudos Sócio-ambientais da Universidade Federal de Goiás – IESA/UFG
Email: ricardoassisgeo@hotmail.com
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