PAULO FREIRE: HISTÓRIA, HISTORICIDADE, ENSINO E CIDADANIA - Cristiano Biazzo Simon
Vários estudos têm evidenciado as mudanças sociais ocorridas com o processo de globalização e seus efeitos na vida das pessoas. Acerca desse processo, Sousa Santos (2003) critica o fato de a definição estar sempre vinculada a aspectos econômicos, que tiveram “como conseqüência dramática a transnacionalização da produção de bens e serviços e dos mercados financeiros”, preferindo privilegiar uma definição mais sensível às dimensões sociais, políticas e culturais por entender que não existe uma globalização, mas globalizações.
Essa nova experiência social propiciou também a emergência de uma vontade de desordem e de emancipação, o que trouxe como conseqüência a noção clara de que “o inimigo das soluções fundamentais terá que ser buscado em múltiplos lugares, inclusivamente em nós mesmos [e é por isso também] que a crise da ordem social torna mais difícil, e não mais fácil, pensar a desordem verdadeiramente emancipadora”. Santos (2011), ao fazer referência a esse processo, enfatiza que outra forma de globalização poderia ocorrer oriunda dos movimentos sociais e da periferia, onde um conhecimento que fosse produzido no interior de uma crítica às grandes corporações da mídia questionasse a lógica da relação produto – capital – produtividade que alicerçaria a ideologia neoliberal.
Em função das questões expostas, se torna possível afirmar que o ensino de história na atualidade coloca como desafio construir um conhecimento que propicie uma prática pedagógica capaz de preparar os alunos para um “raciocínio histórico independente”. Assim, estaríamos formando cidadãos preparados para usar suas habilidades, tanto na identificação de problemas sociais, como em suas decisões pessoais cotidianas. O ensino de história, portanto, poderá funcionar como uma estratégia para aqueles que queiram resistir à imposição de outros, de uma consciência histórica forasteira e escolher em seu lugar, criar a sua própria, para recorrermos às palavras de Laville (2002).
No meu entendimento, a obra de Paulo Freire vai ao encontro desses objetivos pelo fato de conceber a história humana como possibilidade e futuro, concepção esta “autenticamente comprometida com a libertação/humanização do mundo sociocultural e historicamente construído”. Sua obra, por intermédio de categorias como “inconclusão”, “ser mais” e “consciência humana sobre sua condição de ser no mundo”, convergem para uma visão de história que refuta fatalismos e determinismos e concebe a capacidade e a responsabilidade da espécie humana pelos destinos de si mesma e do mundo (ZITKOSKI, 2010).
Laville (2002) salienta que um dos objetivos da educação histórica hoje está em formar o cidadão como alguém capaz de pensar criticamente a “realidade” do seu tempo e de participar na sociedade democrática de acordo com os seus princípios. Objetivo bem diferente do ensino de história vinculado ao Estado–Nação que, através de uma versão oficial de um passado histórico compartilhado, promovia, no cidadão, o respeito à ordem estabelecida. Ou seja, o que coloca como fundamental hoje é a mudança de uma metodologia a serviço da nação para uma metodologia a serviço da democracia e da formação do pensamento crítico.
A obra de Paulo Freire pode contribuir para a formação desse pensamento crítico, à medida que o autor indica o seu entendimento sobre consciência crítica. Segundo ele, é aquela “que possibilita inserir-se no processo histórico como sujeito, evita os fanatismos e o inscreve na busca de sua afirmação”. Além disso, caracteriza-se como um processo em que os seres humanos são desafiados pela dramaticidade do seu momento atual, “se propõem a si mesmos como problema. Descobrem que pouco sabem de si, de seu ‘posto no cosmos’, e se inquietam por saber mais [...] e, ao se instalarem na quase, senão trágica descoberta, do seu pouco saber de si, se fazem problema a eles mesmos. Indagam. Respondem, e suas respostas os levam a novas perguntas”. (FREIRE, 2005, p. 31). Em seminário apresentado em Roma sobre a conscientização e alfabetização de adultos, em 1970, complementa que conscientização é um compromisso histórico e também consciência histórica: “é inserção crítica na história, implica que os homens assumam o papel de sujeitos que fazem e refazem o mundo [...] criem e recriem sua existência com um material que a vida lhes oferece” (FREIRE, 2001, p. 30).
Quanto ao pensamento de Paulo Freire acerca da consciência crítica podemos dimensionar o seu alcance e importância a partir do grande debate no campo do ensino de história sobre a consciência histórica. Uma das correntes que analisa a questão tem o entendimento de que esta é resultado de condições do ambiente histórico e cultural e da preparação intelectual do indivíduo, tornando-o capaz de conceber a condição histórica das coisas e agir conscientemente sobre elas, assim ela se constituiria em uma conquista do intelecto restrita aos beneficiários da mesma. A outra é de que a “consciência histórica constitui-se mediante a operação genérica e elementar da vida prática, do narrar, com o qual os homens orientam seu agir e sofrer no tempo” (RÜSEN, 2001, p. 67). Segundo, ainda, Jörn Rüsen (2001) trata-se da “suma das operações mentais com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de tal forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo” (p. 57).
A importância desse pensador da cultura que tem por objetivo primeiro refletir sobre a educação é que o mesmo dialoga, para isso, com variados conhecimentos e níveis do mesmo. Destacam-se nesse rol a filosofia, a história, a política, a antropologia. A influência de seu pensamento no Brasil e no mundo é de um alcance que faz com que tenhamos muito claro os objetivos desse trabalho em função do número de obras que produziu, dos diálogos travados em lugares por onde passou e do legado construído ao longo dessa trajetória.
A sua produção intelectual está calcada em base existencial, fundamentos filosóficos e encontro com pessoas caracterizado por “escuta sensível” e “dialogicidade”, seu maior cuidado e preocupação nesse “encontro” foi com os mais necessitados e excluídos a quem ele chamava “oprimido”. Para se ter uma idéia da importância que esses tiveram em sua vida, eles são o próprio objeto de sua maior obra de referência, a Pedagogia do Oprimido.
Destacando-se nesta (1968) e no conjunto de sua obra as temáticas: classe social, movimentos sociais, subjetividade e conscientização, educação popular, tecnologia e autocrítica são muito caras para Freire. Mais tarde, dialoga com sua própria obra de referência, para se ter uma idéia da complexidade e densidade de uma proposição de refletir sobre a historicidade de seu pensamento. Em 1992 publica o balanço dessas reflexões em Pedagogia da Esperança, um reencontro com a Pedagogia do Oprimido.
Além de sua relação mais forte com os oprimidos, dialogou com intelectuais de universidades da América Latina, Europa, Austrália e Nova Zelândia e religiosos, especialmente, católicos e protestantes. Além desses, em vários outros momentos esteve com militantes do movimento negro e porto-riquenhos nos Estados Unidos e tantos outros, assim como, partidos políticos de esquerda, do Brasil e do mundo. Quanto aos fundamentos filosóficos dialoga com o existencialismo, a fenomenologia, o personalismo cristão, hegelianismo e o materialismo histórico, mas sempre mantendo coerência com seu pensamento sobre a importância de a liberdade e a “autonomia” habitarem o pensar e o existir dos sujeitos.
Tratando da teoria historiográfica e prática pedagógica a partir de um levantamento sobre correntes de pensamento que influenciaram o ensino de história no Brasil, (AZEVEDO & STAMATTO, 2010) tratam da renovação de práticas tradicionais e do fato de que várias são as teorias educacionais que elegeram a reflexão crítica como princípio e fazem referência, desde àquelas identificadas com a Pedagogia Libertadora e a Crítico - social dos conteúdos, como as mais recentes Teorias do currículo. Mencionam as mesmas autoras as primeiras experiências no início do séc. XX quando a “Pedagogia Libertária” difundiu suas idéias por escolas modernas do educador espanhol Francisco Ferrer Guardía, fundadas por anarquistas ou membros de sindicatos. Como eram iniciativas do movimento operário, logo foram fechadas pela repressão.
Na década de 1950 outras escolas próximas dessa orientação existiram por iniciativa de movimentos sociais e daqueles conhecidos como de cultura popular. Na década de 60 observam grande intensificação com a Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, que as mesmas autoras tratam como evidente sua contribuição para o ensino de história que em décadas posteriores utilizou palavras geradoras, partiu de situações do presente para relacionar com as do pretérito sem preocupar-se em seguir conteúdos tradicionalmente estudados. Foi vítima de críticas a essa abordagem “por considerar a falta de acesso aos saberes sistematizados um empecilho para a ação transformadora da sociedade”.
As questões colocadas anteriormente nos instigam a pensar, como profissionais da área, a importância do processo educativo e, especialmente, como o ensino de história tem papel relevante, principalmente diante de uma sociedade caracterizada pela precariedade da vivência de práticas democráticas e de cidadania. Frente a isso, podemos dimensionar o quanto o ensino de história pode contribuir para complexificar, adensar e fazer com que os jovens reflitam sobre seu lugar na sociedade em que vivem de forma crítica. Isso possibilitaria a construção sólida de identidade própria relacionada ao grupo social em que estão inseridos e, desta maneira, contribuiria para imprimir mais agilidade e eficácia às tarefas necessárias para fazer avançar o processo de implementação de uma cidadania plena.
Essas reflexões instigaram a continuidade de pesquisas sobre as possibilidades de implantação e efetivação de práticas democráticas e de aprofundamento da cidadania. A questão da cidadania assumiu papel tão importante para a sociedade brasileira a ponto de estar inserida na regulação social do ensino brasileiro.
Esta regulação vai desde a Constituição Federal que prevê, em seu artigo 205, ser objetivo da educação “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, passando pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394, de 20 de dezembro de 1996) que prevê, em seu artigo 2o, que a educação “tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, e chega aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino fundamental que coloca como objetivos do ensino de História: “dar uma contribuição específica ao desenvolvimento dos alunos como sujeitos conscientes, capazes de entender a História como conhecimento, como experiência e prática de cidadania” (MEC: PCNs, 1997); e os PCN’s para o ensino médio, que afirmam, especificamente para o ensino de história no ensino médio, ser objetivo do ensino de história propondo, entre outras coisas, ampliar estudos sobre as problemáticas contemporâneas, situando-as nas diversas temporalidades, servindo como arcabouço para a reflexão sobre possibilidades e/ou necessidades de mudanças e/ou continuidades.
Acreditando que o ensino de História possa, sim, contribuir na formação da cidadania, não se pode deixar de enfatizar que este ensino não pode e não deve ser instrumentalizado pelo Estado para a consecução de uma “cidadania” que já viria “formatada” e definida. Chama a atenção no texto o fato de o entendimento de cidadania parecer estar pautado pelas mesmas ambigüidades das reflexões sobre o conceito no campo das ciências sociais hoje. Em alguns momentos é entendida pela via da ampliação de direitos, noutros relacionada à questão da cultura enquanto elogio à diferença que é parte da doutrina do multiculturalismo, o que equivale a atribuir ao Estado o papel de preservar a “liberdade concreta” que significaria gerenciar a manutenção das diferenças entre os grupos sociais (MAGALHÃES, 2003).
Essas questões até aqui apontadas emergem de uma experiência histórica como indivíduo e profissional da história que tem se preocupado com o tema da transição brasileira e das possibilidades de implantação de uma sociedade democrática no país, tendo em vista nossa tradição autoritária e uma vivência assimétrica da cidadania.
Nas pesquisas que realizei ao longo da vida acadêmica procurei analisar o processo de transição política do país. Para tanto, analisei um setor da elite agrária e segmentos da universidade pública brasileira no que diz respeito aos seus comportamentos nesse processo (SIMON, 1998, 2002). Essas análises propiciaram dialogar com outros atores e segmentos envolvidos, saltando aos olhos, entre outras coisas, que todos reivindicavam democracia. Contudo, estava presente a assertiva de que a “verdadeira” democracia era aquela que “eu quero”, a que melhor viesse a se amalgamar ao projeto de sociedade colocado pelo segmento social do qual faço parte, com o conseqüente não reconhecimento da legitimidade de qualquer outro.
Essas reflexões instigaram a continuidade de pesquisas sobre as possibilidades de implantação e efetivação de práticas democráticas e de aprofundamento da cidadania e remeteram-me à larga produção sobre ensino de história e cidadania dos professores do Departamento da Universidade Autônoma de Barcelona, especialmente o de Joan Pagès.
Em texto de 2011, esse professor esclarece que, para que os estudantes dêem sentido à perspectiva política ensinada nas lições de história, seria necessário que os mesmos relacionassem essa aprendizagem com o presente para que pudessem compreender nas relações e comparações entre o passado e o presente, que o passado conforma a sua existência e, portanto o seu futuro como cidadãos. Assim, aniquilar esse vazio existente entre o ensino de história e os conhecimentos atuais pode tornar mais simples e compreensível o entendimento dessa perspectiva.
O referido professor sublinha que se o nosso desafio como professores e professoras de história e como formadores desses professores é conseguir que a história contribua para a consciência cidadã, os valores e habilidades mentais necessárias para que nossos jovens saibam que seu futuro será o resultado do que existiu, do que estamos fazendo e do que fariam homens e mulheres em um contexto cada dia mais globalizador em que fará falta saber em cada momento que decisões que se tomam em lugares distantes de onde residimos podem nos afetar com muito mais força que outras que são tomadas ao lado de nossas casas. E que, em contrapartida, ações que são tomadas próximas de nossa casa podem ter um peso decisivo para frear situações que estão acontecendo a enormes distâncias de onde vivemos. O mesmo conclui, ainda, que a cidadania em que acredita está cada vez menos nacional e menos pautada por fronteiras artificiais e que esta será uma cidadania mundial (PAGÈS, 2011).
Referências bibliográficas
AZEVEDO, Crislane Barbosa. ; STAMATTO, Maria Inês Sucupira. Teoria historiográfica e prática pedagógica: as correntes de pensamento que influenciaram o ensino de história no Brasil. Antíteses, v. 3, n.6, jul – dez de 2010. P. 703 – 728.
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MAGALHÃES, Marcelo de Souza. História e Cidadania: por que ensinar história hoje? In ABREU, Martha e SOIHET, Rachel (Orgs.). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavras, 2003.
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ZITKOSKI, Jaime José. Paulo Freire & a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2010.
Cristiano Biazzo Simon
Professor da Área de Metodologia e Prática de Ensino de História do
Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina-PR
simon@uel.br