QUANTAS LÁGRIMAS DISFARÇAMOS SEM BERRO? mineração e a dinâmica necroeconômica do capital - Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves

30/01/2019 14:15

 Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press.Brasil

 

E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(O sobrevivente, de Carlos Drummond de Andrade).

Há pouco mais de 3 anos o Brasil assistiu assombrado a rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, no município de Mariana/MG. O desastre da Samarco/Vale/BHP revelou de maneira axiomática os riscos do modelo mineral brasileiro e as implicações socioambientais da implantação de infraestruturas em rede como minas a céu aberto, pilhas de estéril, barragens de rejeitos, minerodutos, ferrovias e terminais portuários. Ademais, a morte e o adoecimento de trabalhadores, a destruição de comunidades, a deterioração de ecossistemas da bacia do rio Doce e a pilhagem dos bens comuns que garantiam a existência digna de camponeses, indígenas, ribeirinhos e pescadores exemplificaram alguns dos motivos para que novos desastres não se repetissem em Minas Gerais ou em outros territórios “erodidos” pelo extrativismo mineral no Brasil.

No entanto, constatou-se a continuidade das estratégias corporativas das empresas pela maximização contínua dos lucros no setor extrativo mineral mesmo em um contexto de queda do preço de commodities como o minério de ferro no mercado global (WANDERLEY, 2017). Por consequência, a flexibilização dos licenciamentos, estudos técnicos apressados e precários, a captura do estado pelas corporações, o comportamento permissivo e passivo dos governos diante das pressões do setor, a construção de barragens baseadas em técnicas mais simples, menos seguras e mais baratas, redução de custos operacionais, de manutenção e monitoramento dessas estruturas e as intervenções ambientais em larga escala nos territórios montaram um cenário revelador de que um novo desastre de grandes proporções seria questão de tempo (MILANEZ, 2019).

Neste sentido, com a manutenção estrutural do modelo de mineração e dos riscos de desastres socioambientais outro rompimento de barragem de rejeitos voltou a sobressaltar a população de Minas Gerais e do Brasil. No início da tarde do dia 25 de janeiro de 2019 rompeu-se a Barragem I em Brumadinho/MG, uma barragem de grande porte com mais de 85 metros de altura e com capacidade de aproximadamente 12,7 milhões de metros cúbicos de rejeitos. Era utilizada para a contenção dos rejeitos do minério de ferro extraído na Mina Córrego do Feijão, pertencente à Vale e inserida no Complexo Paraopeba.

A lama liberada pela ruptura da Barragem I desenhou um rastro de ruína contra tudo o que estava a jusante, como a área administrativa da empresa, refeitório, veículos, trabalhadoras e trabalhadores, pousadas, turistas, pontes, instalações de energia, casas da Vila Ferteco e de propriedades rurais locais.  Em poucas horas depois as implicações do desastre começaram a aparecer nos noticiários online e transmitidos em canais de televisão. Pessoas sendo resgatadas vivas por bombeiros em helicópteros, corpos das vítimas identificados, animais agonizando na lama, desespero de familiares pelas mortes e pelos que continuam desaparecidos, cenários de exaustão completa das paisagens expostos em vídeos e fotografias sublinhando a atmosfera de medo, insegurança, perdas, dor e indignação.  

Com efeito, no momento em que escrevo este texto, na noite do dia 29 de janeiro de 2019, conforme informações da Defesa Civil de Minas Gerais, os números de vítimas do desastre da mineração em Brumadinho somam 84 mortes confirmadas e 276 pessoas desaparecidas (UOL NOTÍCIAS, 2019). Logo, esse desastre e outros como o ocorrido em Mariana/Bacia do rio Doce exemplificam que o modelo extrativista mineral brasileiro revela-se indissociável do metabolismo necroeconômico do capital (ARÁOZ; PAZ, 2016). É uma economia de morte, pois está assentada na sistemática pilhagem ambiental, no adoecimento e no óbito de trabalhadores. Logo, esse modelo mineral opera, de maneira indubitável, a fratura de territórios e o ferimento dos corpos dos trabalhadores, homens e mulheres como se fossem “carcaças do capital” (MÉSZÁROS, 2007).

Destacam-se ainda que as intervenções da mineração nas paisagens e nos ecossistemas e a exaustão ambiental provocada por décadas de atividade ou por desastres de grande escala como em Mariana e Brumadinho, expressam um processo enfático de amputação ecológica: “una remoción física de un ecosistema, que destruye no sólo el entramado biológico, como las especies vivas, sino también su basamento material con nula capacidad de reposición en escala de vida humana” (GUDYNAS, 2015, p. 54).

No entanto, a amputação não é apenas ecológica, seus efeitos suplantam a escala do ambiente natural e impacta a dinâmica socioeconômica e cultural dos territórios fraturados e cindidos pela explotação a céu aberto. Há, nesse sentido, a deterioração sistêmica das práticas e potenciais produtivos dos territórios de existência coletiva.

Sendo assim, a constatação de que o modelo mineral brasileiro é um problema estrutural constituído nas últimas décadas, atado ao capitalismo neoliberal e ao neoextrativismo, explicita os riscos eminentes em territórios minerados e demonstra que Brumadinho não é um caso isolado. Essa situação foi agravada diante de um estado subserviente às grandes empresas mineradoras e que pouco fez depois do que ocorreu em Mariana.

Destarte, o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho ocorreu enquanto as empresas mineradoras investiam em dispositivos de poder baseados em discursos econômicos, de geração de emprego, desenvolvimento dos municípios e dos estados minerados, preocupação ambiental e segurança do trabalho, perícia tecnológica e de engenharia para retomar as operações da Samarco em Mariana. Sucedeu no momento em que era fortalecida uma estratégia de apagamento da memória do desastre da Samarco/Vale/BHP. 

Por outro lado, há a memória inolvidável dos sujeitos experimentados na dor pelos familiares e amigos mortos, a perda da casa onde moravam, a espera por um novo local de existência digna, a destruição das roças e dos quintais pelas toneladas de lama de rejeitos de minério de ferro. Sendo assim, diante dos desastres provocados por uma corporação transnacional que corrobora com o modelo mineral predatório no Brasil, pode-se retomar a clarividência dos versos imiscuídos no poema Lira Itabirana, do poeta mineiro Carlos Drummond de Andrade:

O Rio? É doce.
A Vale? Amarga.
Ai, antes fosse
Mais leve a carga.

[...]

Quantas toneladas exportamos

De ferro?

Quantas lágrimas disfarçamos

Sem berro?

Nos últimos anos a expansão das fronteiras extrativas de minérios no Brasil colocou o setor mineral como um dos eixos centrais das exportações brasileiras. Apenas entre os anos 2000 e 2011 - período de rápida valorização das commodities minerais no mercado global -, a exportação de minérios, que representava 6,8% da pauta exportadora do país, subiu para 17,6% (WANDERLEY, 2017). Consequentemente, a territorialização de megaempreendimentos de mineração provocou a reorganização dos espaços e das paisagens, incrementou o volume das exportações na mesma medida em que ampliou as escalas das implicações espaciais, dos conflitos e dos riscos socioambientais no território brasileiro.

De modo consequente, os lucros das empresas foram incrementados na medida que tiveram, por intermédio de apoio estatal, importantes incentivos comerciais, fiscais, financeiros, ambientais e trabalhistas. Outrossim, palavras como desenvolvimento, progresso, emprego e modernização se alastraram no léxico não só das empresas, mas, também dos discursos oficiais de municípios e estados minerados, como se fossem parte de uma episteme, de convenções e de iconografias estampadas em propagandas, livros e jornais para sustentar a legitimidade da mineração. Já na escala dos territórios a pilhagem de paisagens, a morte e o adoecimento de trabalhadores e a extração sem limites dos minérios expressam os males e as dores um país extrativista. 

Constitui-se, assim, um modelo mineral hegemônico que fixou dependência, proporcionou poder às mineradoras e impede o país de construir alternativas. Cabe a nós, portanto, interpretar esse modelo, estabelecer as críticas necessárias e pensar caminhos técnicos, econômicos e políticos para transformá-lo. Além disso, compreender seus efeitos para contribuir com as ações de movimentos sociais e sindicais, dos trabalhadores e comunidades impactados e em lutas por justiça e autonomia nos seus territórios.

Dessa forma, destacam-se que os efeitos da mineração lastreiam as escalas micro e macropolíticas. Seus impactos incidem sobre a economia, a cartografia regional dos territórios, as demandas por energia e água, as formas de regulação ambiental e do trabalho e os rumos estruturais dos modelos de desenvolvimento de um município, estado ou país. No entanto, as dimensões micropolíticas da existência também experimentam os impactos da mineração. As experiências banais da vida cotidiana são afetadas, a subjetividade, o corpo mutilado por acidentes de trabalho, a humilhação pelos baixos salários, os sentimentos de medo das famílias que vivem próximas a megaestruturas como as barragens de rejeitos. Soma-se a isso a expropriação epistémica traduzida pela erosão dos saberes, festas, sociabilidades e símbolos das culturais locais, necessária para viabilizar a territorialização dos projetos de explotação mineral em determinado território (ARÁOZ; ROSSI, 2018).

O imperativo da apropriação, do domínio e da explotação exaustivas das paisagens mineiras sustenta a acumulação capitalista enquanto impõe a pilhagem dos bens comuns elementares para a reprodução primária da vida nos territórios. A mercantilização dos solos, das águas, do subsolo e das floretas expressa a contínua dilatação da fronteira mercantil do capital, desestruturando ecossistemas e formas de organização espacial de sujeitos e comunidades ancestrais. Isso traduz também a expansão da produção dos espaços capitalistas que na América Latina e, especialmente no Brasil, abastecem o mercado de matéria prima a custo de sacríficos dos territórios e dos homens e mulheres despojados dos lugares de vida coletiva.

Logo, percebe-se que os grandes projetos de extrativismo mineral a céu aberto impõem um profundo processo de expropriação, transformações ecológicas, usos e significados dos lugares e das práticas produtivas e culturais locais. Decreta a disciplinarização dos espaços e dos corpos que neles vivem e trabalham.  

Nos enclaves econômicos da mineração as decisões do projeto extrativista para a abertura ou expansão das minas, os usos das águas, os ritmos extrativos, o destino dos minérios, a construção de barragens, minerodutos, ferrovias, estradas, galpões etc., são tomadas sem participação efetiva das populações. As possibilidades de diálogos participativos entre as empresas, o estado e as comunidades para a construção de territórios autônomos e livres da mineração inexistem. Impera o poder do capital mineral e o controle corporativo dos territórios.

A mineração impõe uma completa perda de domínio sobre as formas de organização espacial local, transformando os laços sociais de solidariedade e os lastros de convivência coletiva. Isso afeta os usos dos solos, das sementes e das águas, a construção de moradias e as possibilidades de um bem viver livre da atmosfera nebulosa do medo do ar que as pessoas respiram, da água que bebem ou dos riscos de eventos nefastos como o rompimento de barragens. 

Os territórios densos por suas configurações etnográficas, guardiões de significados étnicos, culturais e simbólicos, são coisificados, fraturados e destituídos de qualquer pertencimento para serem “moídos” pela máquina mineradora, serem sacrificados para alimentar o mercado nacional e internacional de minérios.

Todavia, a transformação do modelo de mineração adotado no Brasil e as alternativas para que outros desastres socioambientais como em Mariana e Brumadinho não se repitam passam pela capacidade das comunidades e trabalhadores se organizarem. Ainda, conta com a construção de novos veículos de participação, decisão e correlação de forças nas tomadas de decisões sobre os usos e destinos dos seus territórios. 

 

Referências

ANDRADE, C. D. Alguma poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ARÁOZ, H. M.; ROSSI, L. J. Extractivismo minero y fractura sociometabólica. El caso de Minera Alumbrera Ltd., a veinte años de explotación. RevIISE, Argentina,  Vol 10 Año 10, pp. 273-286, 2018.

ARÁOZ, H. M.; PAZ, F. Extractivismo: metabolismo necroeconómico del capital y fagocitosis de las agro-culturas. Reflexiones y aprendizajes desde las re-existencias campesinas en el Valle del Conlara. In: PORTO-GONÇALVES, C. W. et.al. (Org.). Despojos y resistencias en América Latina, Abya Yala. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Estudios Sociológicos Editora, 2016. P. 141-175.

GUDYNAS, E. Extractivismos: ecología, economía y política de un modo de entender el desarrollo y la Naturaleza. Cochabamba: Cedib, 2015.

MÉSZÁROS, I. O desafio e o fardo do tempo histórico. Tradução de Ana Cotrim e Vera Cotrim. São Paulo: Boitempo, 2007.

MILANEZ, B. Entrevista. 2019. In: FOLHA DE SÃO PAULO. Um novo rompimento de barragem era questão de tempo, afirma pesquisador. Disponível em: . Acesso em: 29/01/2019.

UOL NOTÍCIAS. Brumadinho: sobe para 84 número de mortes; 76 pessoas estão desaparecidas. 2019. Disponível em: . Acesso em: 29/01/2019.

WANDERLEY, L. J. M. Do Boom ao PósBoom das commodities: o comportamento do setor mineral no Brasil. Versos - Textos para Discussão PoEMAS, 1(1), p.1-7, 2017.

Fonte da imagem: (acesso em 29 jan. 2019).

Ricardo Junior de Assis Fernandes Gonçalves

Doutor em Geografia, professor do Curso de Geografia da Universidade Estadual de Goiás - Campus Iporá e 

pesquisador do Grupo de pesquisa e extensão Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade (PoEMAS / UFJF).

E-mail: ricardo.goncalves@ueg.br

Ficha bibliográfica:

GONÇALVES, Ricardo Junior de Assis Fernandes. Quantas Quantas lágrimas disfarçamos sem berro? mineração e a dinâmica necroeconômica do capital. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, vol. 9, nº. 11, 30 de janeiro de 2018. [ISSN 22380-5525]