QUEM ROUBOU O MAPA DO REI? - Eguimar Felício Chaveiro
A vitória do rei naquela guerra por territórios, sim senhor, dependia exclusivamente do Sr. Vallimuyr, único cartógrafo do principado e das adjacências. Dado a sua importância beligerante, chamavam o cartógrafo Grafiteiro de estratégias, o que ele, com semblante machucado, apenas respondia: “cumpro apenas um dever: colocar o mundo no espaço mediante formas, escalas e legendas”.
Se anexasse as terras altas, o rei poderia contas com as águas caudalosas que, mais a frente, serviria para edificar o canal de escoamento e de conexão entre o seu principado e o povo rico das Bandas de lá – Dachkur. Esse caminho líquido seria a ponta de entrada para o comércio incipiente que lograria a história suntuosa do principado, que seu filho preferido haveria de governar por uma eternidade humana e férrea.
Senhor Vallimuyr serviu-se de tudo que tinha em mãos: pegou as informações básicas catalogadas em diários de campo e registros feitos com pergaminho por viajantes aventureiros, organizou-as em classes por intervalos simétricos. Fez uma classificação da drenagem separando, na mesma operação, a fitofisionomia da vegetação consoante aos tipos de relevo. E descobriria onde, na terra do adversário, poderia haver moradia e daí a ocupação das terras férteis, propícias para a economia de subsistência daquele Ducadinho desarmado.
Não foi difícil gerar uma escala que possibilitasse a leitura panorâmica do uso da terra do adversário, razão também que poderia apontar os sentidos de logística de surpresa para sufocar qualquer tentativa de reação. A legenda de seu mapa teria uma linguagem beliciosa: terrenos abruptos e montanhosos que geravam um efeito de perspectiva para ver e não ser visto; locais de moradia e de cultura permanente, prontos para serem danificados e desenvolver o medo no adversário. O medo, esse sentimento que fragiliza e faz perder a lucidez – condimento das guerras. A linha de escape nas planícies sinuosas – e o sopé da artilharia.
Mas aconteceu o inesperado: roubaram o mapa do rei. Havia um adversário infiltrado ou o Senhor Vallimuyr, fadado a paz e contra as guerras, seria um comparsa complacente ao adversário?
Naquele tempo não havia Jatos que rompia a velocidade do som deixando no vácuo celestial apenas cortinas de fumaça, nem havia imagens de satélite; não se conhecia a balística otimizada e de alvo perfeito, muito menos mísseis de alcance elevados. Não havia estradas próprias para o Trem Bala, nem aerovias e caminhos subterrâneos. Não se pensava o fluxo artificial, mas o tempo lento da vida da natureza. Não se tinha notícias de ondas mínimas pontilhadas sob o acesso da nanocâmeras. Não se cogitava sondagens de magmas e utilização de energia geotérmica para insuflar os padrões de arranque de Caças.
O espaço era absurdamente desconhecido, talvez apenas vivenciado por pequenas rotas entre a moradia, a lavoura, o rio e a montanha por onde se falava com divindades nuas. O descobrimento do espaço era ameaçador, o que exigia criar um saber para o seu domínio e ativar armas para valorizá-lo pelo critério da extensão. A água abundava-se; as florestas perdiam-se de vista – eram como nuvens terrenas negras e misteriosas.
Uma pergunta acendia a ira do rei: quem roubou o seu mapa?
O rei sabia e no seu solilóquio silencioso não deixava de pregar: o mapa é a minha vida; a minha vida é o meu território; o território é o meu poder; o meu poder é a força com que dirijo o destino da população... Não poderia assassinar o Senhor Vallimuyr – ele era o único cartógrafo! Nem bastava o mapa mental nitidamente traçado nas sinapses internas do Senhor Vallimuyr. Já havia acabado os grafites, material de importação exatamente na nação a qual queria invadir. Merda!!!
A conversa teve que acontecer: “e, aí, Senhor Vallimuyr, estamos todos arruinados” – disse o rei. “Quem não conhece o espaço e seus elementos, Senhor rei, está perdido; a quem não conhece o modo de usá-lo também. Estão perdidos os que se desesperam em observações bélicas. O mapa sintetiza a geografia – e essa deve ser reinventada sempre.” – afirmou Vallimuyr.
A conversa apontava para a sofreguidão de ambos quando, serelepe e brincalhão, chegou, num repente parecido a uma chuva torrencial, o cachorrinho de estimação do rei com um pedaço do mapa na boca, assegurando que o rei havia sido alegremente destruído numa brincadeirinha sem pressa embaixo de seu próprio trono. Entre o desespero do rei e a graça do cachorrinho, Senhor Vallimuyr compreendeu a mensagem: Sim, Senhor, a geografia serve antes e mais nada para fazer a paz.
OBSERVAÇÃO: Este texto anônimo foi encontrado dentro de uma garrafa pet num pequeno monturo caseiro em Trindade - Goiás.
Eguimar Felício Chaveiro
Doutor em Geografia Humana pela USP e
Prof. Adjunto do curso de Geografia da UFG