REFLEXÕES SOBRE OS LUGARES E AS IMAGENS DE VIAGEM NA GEOGRAFIA - Pablo Sebastian Moreira Fernandez

10/03/2012 12:00

A primeira necessidade de fixar os lugares no papel está ligada à viagem:
é o memorando da sucessão das etapas, o traçado de um percurso.

Italo Calvino

Dos Lugares às imagens de viagem

Os lugares e as imagens das viagens sempre estiveram presentes nos discursos da Geografia. Diria que uma imaginação geográfica desde os seus primórdios se construiu a partir das narrativas de viajantes, desde aqueles que precedem a ciência, passando por Humboldt aos geógrafos contemporâneos. São geografias plurais, e que partem do olhar curioso dos sujeitos, diz da terrae incogintae que pode se construir a partir de uma enciclopédia ilustrada apresentando os costumes de uma ilha na Oceania, ou a partir de uma fotografia de alpinistas no Himalaia apresentada na National Geographic. A imaginação conduz o olhar espacial a partir das questões de um pequeno príncipe viajante em Saint-Exupéry, na voz do aedo na Odisséia de Ulisses, nos diários do genovês Marco Polo nas terras do Oriente de Kublai Kahn.

Sobre a ideia de imaginação geográfica, resgato a concepção do geógrafo norte-americano de Berkeley. Carl Sauer, num texto intitulado a “Educação de um Geógrafo” (p.4, 2000), diz que “o geógrafo e o “geógrafo-por-ser” são viajantes de fato quando podem, na imaginação, quando não há outro meio”, são um tipo de espírito caminhante e observador, e que passam por atalhos e lugares desapercebidos. O geógrafo é um viajante e deve estar aberto às mudanças de rumo, e a viagem é um tipo de prática espacial que indica as diferenças de paisagens e mostram diferentes modos de produzir a vida e construir os territórios.

A viagem atua enquanto imagem forte da Geografia dado o sentido de busca ao desconhecido, de descoberta do outro. O geógrafo também é um viajante, e nos indica uma postura e ação: “une géographie en acte, une volonté intrépide de courir le monde, de franchir les mers, d'explorer les continents[1]” conforme o francês Eric Dardel (1990, p.1) em texto originalmente escrito em 1952.  A Geografia como um conhecimento que necessita dos pés que caminham - ou da junção entre os pés - e da mente - que organiza, estrutura, pensa e revela o dado espacial. Enquanto conhecimento que aproxima o pesquisador da imaginação, a viagem enquanto trajeto, ou como trajetória, indica um trânsito que conecta lugares, experimenta paisagens, que produz imagens.

Ainda sobre o movimento da viagem em busca de imagens, pode-se dizer que ele situa o sujeito por entre itinerários de lugares, repletos de paisagens, lugares que são compostos de intenções e sentimentos, construções da cultura e de subjetividades. As imagens que emergem na viagem são como guias em processos como e de reterritorialização apresentados por Rogério Haesbaert (2005) e Néstor García Canclini (2010), ou na construção de uma morada, conforme o sentido de “habitar a terra”, indicado por Eric Dardel (1990).

A viagem se apresenta enquanto possibilidade de experiência e nos levam a refletir sobre a relação do sujeito contemporâneo com os lugares. Primeiramente pode-se dizer que a viagem cria espaços e geografias a partir de uma experiência de trânsito, que se inicia com a saída do lugar de origem, o trânsito, a transposição de fronteiras, até a chegada aos lugares imaginados. Diferente da ação do turista massificado para quem os lugares e trajetos são pré-estabelecidos, guiado a vivenciar e a ver (não só o que visual) algo imposto, como o cartão-postal ou o ponto-turístico que pode ser tomado como um atestado de experiência, um lugar que comprova que sujeito “conheceu” este lugar.

Outra concepção (ou entendimento) sobre a viagem, e que tem nos chamado a atenção (tema de nossa tese de doutorado) é aquela realizada pelos migrantes na contemporaneidade. Ao mesmo em que se dá como um tipo de ação performática, ela partirá das vivências do migrante num fenômeno das redes, das possibilidades e da inviabilidade de se transpor fronteiras. A migração faz parte de sua vida, de seu modo de estar no mundo, e conseqüentemente o marca enquanto sujeito de uma viagem.

 

A experiência da viagem... entendimentos

Com o intuito de estabelecer aproximações conceituais e construir um sentido para a viagem que dê conta de elucidar nossa escrita, utilizamos os conceitos filosóficos da vivência e da experiência. Conceitos que emergem dos escritos do filósofo alemão Walter Benjamin em seu trabalho sobre as “Passagens” da Paris do Século XIX. Tal autor nos indica em sua experiência de escrita e leitura da paisagem um tipo de viagem errática (de filósofo exilado) pelas “ruas da capital da modernidade” amparado nas memórias de seu lugar de origem: a cidade de Berlim da qual havia sido expulso.

Este autor cria uma leitura da cidade atual (Paris) a partir de trajetos da infância em Berlim, dos percursos sinuosos do exílio, criando uma imagem de lugar a partir da sobreposição de tempos e paisagens, memórias anteriores e vivências atuais. É este autor quem apresenta os conceitos de Erfahrung e Erlebnis, aqui traduzidos respectivamente como experiência: sendo algo que acontece sem a intervenção da consciência; e vivência: como a experiência vivida, um evento assistido pela consciência.

Erfahrung é o conhecimento obtido através de uma experiência que se acumula, que se prolonga, que se desdobra, como numa viagem; o sujeito integrado numa comunidade dispõe de critérios que lhe permitem ir sedimentando as coisas com o tempo. Erlebnis é a vivência do indivíduo privado, isolado, é a impressão forte, que precisa ser assimilada às pressas, que produz efeitos imediatos (N. do R.T.). (Benjamin, 1995, p.146).

A viagem[2] nestas linhas diz de uma forma de conhecimento espacial e do sujeito para com o mundo. É um conhecimento que implica um desdobramento do olhar, da descoberta, do encantamento com o novo. Não só o olhar é ampliado, mas ocorre um aprimoramento das percepções em geral, sendo que este corpo em movimento se torna receptáculo de estímulos e percepções que fazem parte da vivência: momento em que o sujeito se depara com lugares, lança olhares para as paisagens, transpõe fronteiras. A imagem está ligada intimamente com o olhar e com os olhos. A imaginação seria a capacidade de ler, interpretar e produzir uma imagem. Esta imaginação espacial é amparada por um olhar que é físico e indicador “daquilo que está ali!” em forma real; e pelo olhar subjetivo, indicado a partir das sensações, saberes e memórias de outros lugares.

É o próprio Walter Benjamin (1995) quem situará a modernidade como um contexto cuja experiência perdeu seu sentido de conhecimento, substituído agora pela alienação, pela mecanização dos gestos e o desconhecimento dos sujeitos de suas próprias vivências. A vivência para este sujeito moderno é algo que passa, uma nota despercebida, distante, ele não mais imagina “terras longínquas”, pois as consome em forma de imagens técnicas reproduzidas pelas mídias televisivas e jornalísticas (e hoje digitais). Acomodado em seu mundo privado (o sofá e o controle remoto), imóvel e apático é preenchido com recortes e flashes realistas do lugar distante.

 

Viagens virtuais...

É sobre esta transformação da experiência de conhecimento no mundo contemporâneo (o que Haesbaert irá denominar de “experiência autêntica) que lançamos um olhar questionador sobre “como se dá” a experiência com os lugares no tempo das mídias e redes sociais virtuais. Em tempos da tele-viagem (LEVY, 2009), da presença virtual, da vivência telepresentificada e mediada pelo Google Earth e pelo Street View, nos propomos a reformular questões sobre a experiência. Em primeiro: Para se conhecer um lugar hoje é necessário estar diante dele? Quais são as vivências válidas para se alcançar uma experiência com o lugar?

Assim, um contexto que nos chama a atenção é a da possibilidade de se “realizar” uma vivência virtual a partir das novas tecnologias. Estas que agora permitem uma tomada de vista operada por uma câmera “ao vivo”, situada no ponto de vista de uma calçada ou ruas de São Paulo, Nova York ou Pequim, sem ao menos sair da frente do computador. Estes produtos da cultura técnica têm nos indicado mudanças na experiência do conhecimento e da viagem. Para se vivenciar um lugar, basta-se estar “diante de uma tela conectada”: do computador, da televisão, da imagem de satélite (CANCLINI, 2009).

A tecnologia informacional criou possibilidades de se conhecer um lugar sem precisar ter estado diante dele em sua forma real, a viagem de descoberta torna-se sem sentido, banal. Neste momento, podemos remeter-nos ao questionamento que Néstor Garcia Canclini (CANCLINI, 2009, pp. 187-188) suscita enquanto reflexão das Ciências Sociais, quanto à “validade” da vivência no espaço virtual como possibilidade de atuação e campo de pesquisa. Como conviver com um grupo sem nunca ter tido contato físico com um deles, é uma das perguntas que o autor faz. E retomando a pergunta de James Clifford: Poderiam ser considerados como trabalho de campo os meses e até os anos passados na rede?

 

Alguma consideração

O que propomos nestas linhas é tecer uma reflexão (mesmo que breve) sobre o sentido da viagem e da postura viajante no interior da Geografia, e com ola pode fazer parte da formação de um olhar e de uma identidade.  O olhar burocrático e distante sobre os lugares, que enquadra a paisagem de modo superficial, da concepção geométrica e estática das fronteiras deve ser superado a partir do momento em que os objetos de nosso interesse se tornam fenômenos móveis, invisíveis, e até transitórios. Os sujeitos que constroem os espaços impõe uma dinâmica de incertezas, do imprevisível, que tornam a postura da rigidez incompatível com uma Geografia que se dinamiza a todo momento.

O geógrafo ao se lançar em viagem (mesmo que na imaginação) ele reinventa toda referência de segurança: física, territorial, emocional. Referências que se apresentam na forma de imagens e que situam o geógrafo diante dos lugares e das experiências singulares dos sujeitos num espaço ainda desconhecido. Aqui, ambos (o leitores, produtores de imagens) compartilham a ausência de referenciais, compactuam de sensações e sentidos inversos como o medo, a instabilidade e a desorientação, importante para tocar a intimidade dos lugares.

 

Bibliografia

BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Tradução: José M. Barbosa e Hemerson Baptista. 3ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. (Obras Escolhidas, v.3).

CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, desiguais e conectados. Tradução de Luiz Sérgio Henriques. 3ª edição. Rio de Janeiro: Ed.UFRJ, 2009.

DARDEL, Eric. L’Homme et la Terre: Nature de la réalité géographique. Paris: Editions du CTHS, 1990.

HAESBAERT, Rogério. Migração e Desterritorialização. In: Cruzando Fronteiras Disciplinares: Um panorama dos estudos migratórios. Orgs.: Neto, Helion P. e Ferreira. Rio de Janeiro: Revan, 2005.

LEVY, Pierre. O que é o virtual? Editora 34: São Paulo, 2009.

SAUER, Carl. A Educação de um Geógrafo. In: GEOgraphia, Ano 2, n. 4, 2000. pp. 137-150.

 

Notas


[1] “(...) uma geografia em ação, de um vontade intrépida de correr o mundo, de atravessar os mares, de explorar os continentes”. Tradução nossa.

[2] Tomemos o verbete viagem no Dicionário Português-Inglês Oxford 2007 e suas diversas concepções, sendo que: trip denota o deslocamento de um lugar a outro e também a estadia; journey denota o deslocamento de um lugar a outro; tour é uma viagem organizada que se faz parando em diferentes lugares. Em nossa pesquisa achamos adequado a utilização do termo voyage, pois se aproxima da conceituação de experiência em Walter Benjamin (1995) com um sentido de trajeto de conhecimento.

 

 

Pablo Sebastian Moreira Fernandez
Doutorando em Geografia (IESA/UFG)
Pesquisador colaborador do Laboratório de Estudos e
Pesquisas das Dinâmicas Territoriais - LABOTER