RICHARD HARTSHORNE: DO ESTUDO DA DIFERENCIAÇÃO DE ÁREAS À INTEGRAÇÃO DE FENÔMENOS HETEROGÊNEOS - Dallys Dantas de Souza

29/10/2014 12:00

 

Em Geografia, a diversidade de temas, a variedade de métodos e de abordagens adotáveis e – talvez o ponto mais delicado – a formulação e operação de conceitos e categorias analíticas que subsidiam a pesquisa concorrem, todos juntos, para que a referida disciplina seja questionada quanto ao seu campo de investigação próprio. Assim, conhecer e compreender a natureza e os propósitos da Geografia enquanto ciência jamais foi – e nem é – tarefa fácil para qualquer estudioso interessado na questão.

Richard Hartshorne (figura 1) foi um dos notáveis geógrafos que se dispuseram a contribuir com esta questão. Em 1939 publica seu volumoso livro, The Nature of Geography (A natureza da Geografia)[1], um clássico da literatura geográfica mundial. Entretanto, suas proposições tornaram-se alvo de críticas e objeções por parte da comunidade geográfica à época. Em razão disso, Hartshorne viu a necessidade de esclarecer e defender seu ponto de vista. Em 1959 publica Perspectives on the Nature of Geography (Questões sobre a natureza da Geografia)[2], texto pelo qual reconsidera dez questões fundamentais abordadas no livro anterior. Tais questões correspondem, portanto, aos dez capítulos constituintes de Propósitos e natureza da Geografia.

    Figura 1: Richard Hartshorne (1889-1992).

     Fonte: University of Wisconsin-Madison[3]

 

Importa advertir o leitor que, neste ensaio, além da parte introdutória do referido livro, analisaremos as três primeiras questões abordadas por Hartshorne, a saber: 1) o que se entende por Geografia como o estudo da diferenciação de áreas; 2) o que se entende por “superfície da terra?”; e 3) é a integração de fenômenos heterogêneos uma peculiaridade da Geografia?

Em suas palavras preliminares, Hartshorne aponta e discute alguns problemas metodológicos que permeiam os estudos sobre a natureza da Geografia. Dentre eles, destacam-se: a inobservância de trabalhos anteriores sobre a temática, quando não a distorção das proposições originais, o que acaba por recair numa “conversa fiada metodológica”; e a não recorrência à literatura estrangeira, com exceção de material traduzido para a língua vernácula, que em certa medida produz o mesmo efeito do problema anterior. Tais problemas são observados mesmo em países de tradição na produção do conhecimento geográfico, como Alemanha, Estados Unidos, França e Inglaterra. Evitar esses problemas é uma necessidade dos trabalhos metodológicos, enquanto que o propósito consiste não na propagação de afirmações independentes ou argumentações litigiosas, “mas na elucidação de problemas de preocupação mútua”, adverte o autor (p. 7).

Para Hartshorne, é imprescindível tanto compreender quanto avaliar a estrutura da Geografia desenvolvida ao longo do tempo. Tal atitude permitirá reconhecer os erros lógicos do pensamento geográfico e determinar suas bases conceituais passíveis de rupturas ou continuidades. “O estabelecimento de uma estrutura da Geografia logicamente válida não proporciona, entretanto, por si mesmo, o ímpeto necessário a um progresso substancial dos conhecimentos geográficos”, reconhece Hartshorne (p. 10). O autor parece comungar da proposição segundo a qual a elaboração de critérios conceituais e de meios eficientes para medir as relações existentes entre os fenômenos seria precisamente o que a Geografia necessita para atingir tal progresso.

Como elaborar novos conceitos e critérios? Para Hartshorne, somente através de trabalhos consistentes em diversos setores da Geografia (urbana, agrária, econômica, etc), tal como fizeram os geógrafos norte-americanos ao elaborarem, por exemplo, métodos estatísticos empregados aos estudos de fenômenos urbanos e de localização industrial. Com isso, Hartshorne adverte-nos da importância de se vincular trabalho teórico com trabalho prático. Isto significa que não devemos apenas ficar discutindo teoria e metodologia sem nenhuma relação com a realidade objetiva.

A primeira questão tratada por Hartshorne, delineada no capítulo 1, consiste em esclarecer o que se entende por Geografia como o estudo da diferenciação de áreas. Por área entende-se uma parcela da superfície terrestre. Segundo o autor, a expressão “diferenciação de áreas”, introduzida por Sauer em 1925, causou certo estranhamento a muitos leitores, embora conseguisse denotar um conceito importante expresso nas proposições de Richthofen e, de modo mais evidente, nas de Hettner. Para este geógrafo alemão, a Geografia sempre primou pela busca do conhecimento das áreas na medida em que estas diferem umas das outras. A mera descrição dessas áreas, porém, foi sendo abandonada em função da busca pelas causas da diferenciação. Hettner, portanto, confere à Geografia um status de ciência Corológica, cujo objetivo, conforme ele próprio esclarece, consistiria em “conhecer o caráter das regiões e lugares, através da compreensão da existência em conjunto e das inter-relações dos diferentes domínios da realidade e suas variadas manifestações, e em compreender a superfície da terra como um todo” (p.14), em termos de sua organização natural.

Enquanto “estudo da diferenciação de áreas”, a Geografia deve se ocupar não em determinar diferenças ou semelhanças entre lugares, o que é óbvio, mas sim em estabelecer em que grau ocorre a variação de um ou mais fenômenos (o clima, o relevo, a população, etc). Além disso, para não fazer jus ao rótulo de conhecimento enciclopédico acerca dos vários lugares do mundo, cumpre à Geografia principalmente identificar e explicar as diversas relações (ou vinculações) existentes entre as áreas.

Valendo-se das proposições de Hettner, Hartshorne explicita dois tipos fundamentais de inter-relações observáveis nas áreas. Um deles constitui as relações mútuas, vinculações entre diferentes fenômenos ocorridas em um mesmo lugar, como no caso de um bioma – onde, se sabe, há interação entre clima, vegetação, solo e biota. O outro diz respeito às relações entre diversos fenômenos de diferentes áreas, a interconexão de lugares. Assim, seria razoável inferir que dessa última espécie de relação parece emergir a noção de rede, uma vez que nela a presença do homem constitui o fator que promove maior variação entre as áreas em termos funcionais.

Embora a expressão “o estudo da diferenciação de áreas” consiga referir-se a um válido conceito de Geografia, Hartshorne conclui que seu emprego é inadequado em razão da obviedade denotada nos termos. Nas palavras do autor “todas as ciências consistem no estudo das diferenças. No caso contrário, pouco estudo seria necessário” (p. 22). Além disso, propõe uma definição: “a Geografia tem por objetivo proporcionar a descrição e a interpretação, de maneira precisa, ordenada e racional, do caráter variável da superfície da terra” (p. 22). Mais do que a refutação de uma definição e a proposição de outra, percebe-se nisso a concepção de unidade da Geografia defendida por Hartshorne, uma vez que na superfície da terra ocorrem fenômenos tanto de caráter naturais quanto sociais.

Mas, o que se entende por “superfície da terra”? Esta é precisamente a segunda questão brevemente abordada por Hartshorne. Até o século XVIII, Geografia e Astronomia se confundiam em termos de objetos de estudos, sendo a denominação “Comosgrafia” utilizada para designar o campo de estudos comum a ambos os saberes. Isto é compreensível, visto que até então a Geografia não existia enquanto ciência formal. Após a distinção entre os domínios de cada ciência, operada por estudiosos como Kant e Ritter, o âmbito de investigação geográfica passou a designar-se pela expressão “superfície da terra”. A expressão foi amplamente aceita, muito embora houvesse objeções por parte de alguns geógrafos, que se reportavam a todo o planeta como o domínio de seus estudos. Além disso, reconheceu-se a dificuldade de cunhar um termo que designasse com precisão o objeto de interesse da Geografia. Daí a permanência da expressão.

Outros termos também foram sugeridos por geógrafos no intuito de expressar suas concepções de Geografia. Este foi o caso de Hettner, que empregou a expressão “crosta da terra” para se referir ao conjunto de elementos distintos, porém, inter-relacionados, presentes na superfície terrestre. É também o caso de Carol, que considera essa mesma “crosta terrestre” como sendo formada por cinco elementos – litosfera, biosfera, atmosfera, hidrosfera e antroposfera – que, reunidos, formam o que ele denominou “geosfera”. Dessa forma, as concepções ou conceitos de Geografia estão sobremaneira ligados ao domínio do corpo terrestre, seja em sua superfície mais ou menos espessa.

Entretanto, Hartshorne faz uma reflexão futurista[4], por assim dizer, ao questionar se, quando o homem alcançasse a lua, haveria a exigência de mudar esta definição de Geografia. Para o geógrafo, a mesma definição seria capaz de envolver o satélite terrestre, porém não teria lógica quando assim permanecesse caso o homem viesse a alcançar outros planetas. Em suma, para Hartshorne, pouco importa a expressão “superfície terrestre” ou “crosta da terra” em relação ao trabalho prático do geógrafo. Essa variação de termos possui certa relevância apenas no plano do debate teórico-metodológico.

A terceira questão fundamental explorada por Hartshorne é a seguinte: é a integração de fenômenos heterogêneos uma peculiaridade da Geografia? Essa heterogeneidade de fenômenos passíveis da análise geográfica, entretanto, não deixou de causar aos geógrafos certo desconforto ao terem de explicar qual o campo de estudos de sua disciplina. Na tentativa de fugir a esse suposto problema, alguns geógrafos propuseram a delimitação restrita do campo de estudo da Geografia de modo a inseri-la no rol das chamadas ciências sistemáticas. Um dos objetos propostos foi o de região. Todavia, Hartshorne argumenta que se à Geografia coubesse somente o estudo das regiões, isso não modificaria o fato de, para estudá-las, ainda seria preciso considerar uma variedade de elementos. Em suma, é impossível fugir do caráter essencial da Geografia: a heterogeneidade de fenômenos.

Mas, voltando ao cerne da questão posta por Hartshorne – se é ou não peculiar à Geografia estudar a integração dessa heterogeneidade –, deve-se considerar o método utilizado pelo geógrafo em seu trabalho de análise. Segundo o autor, ao contrário de em outras ciências, na Geografia o estudo parte necessariamente do interesse pela integração dos fenômenos heterogêneos, e não desse ou daquele fenômeno em si. Todavia, esse procedimento metodológico não é uma peculiaridade da Geografia. Ainda que outros pesquisadores, a exemplo de um biólogo ou um físico, selecionem um fenômeno (um vegetal ou uma onda eletromagnética) para compreendê-lo em si mesmo, há de se considerar no estudo sua relação com outros fenômenos. Portanto, conforme defende Hartshorne, a Geografia não possui um caráter ímpar ou excepcional no trato das relações entre diversos fenômenos.

O autor ainda salienta que, enquanto objeto da Geografia, a superfície terrestre é ímpar na integração de fenômenos biológicos e sociais, variando de lugar a lugar, com significativas inter-relações. Hartshorne conclui que a meta da Geografia - que é a compreensão dessa superfície - “abrange a análise e a síntese de integrações compostas de fenômenos inter-relacionados do mais alto grau de heterogeneidade” (p. 38).

Importa ressaltar que, conforme reconhece o próprio Hartshorne, há uma medida da significância dos fenômenos a serem estudados pela Geografia. Isto significa que, embora seja latente a diversidade fenomenal, por assim dizer, cabe ao geógrafo selecionar e analisar os fenômenos que julgar imprescindíveis para se chegar ao objetivo maior da pesquisa geográfica: a compreensão das inter-relações entre os fenômenos que conferem o caráter variável de determinada área, ou a um conjunto delas.

Portanto, das proposições e esclarecimentos delineados por Hartshorne, podemos aprender que a pesquisa em Geografia requer, primeiramente, um razoável conhecimento acerca da base teórico-metodológica da própria disciplina. Isto evita erros e/ou equívocos metodológicos. Faz-se necessário, também, compreender o sentido denotado por alguns termos utilizados em trabalhos geográficos, especialmente os que expressam importantes conceitos geográficos. Estes não devem ser menosprezados ou confundidos em razão do emprego de vocábulos que os expressam. Além disso, o esforço teórico no sentido de elucidar aspectos pertinentes ao campo de estudo da Geografia, como objetos e métodos de análise, não pode estar dissociado do trabalho prático, pois, afinal, é este quem substancia a teoria.

E se fosse possível chegar a uma síntese de toda essa discussão desencadeada por Hartshorne, seria a seguinte: é preciso estudar com mais cautela os nossos clássicos!

 

Referência

HARTSHORNE, R. Propósitos e natureza da geografia. São Paulo: Hucitec, 1978.

 

 

Dallys Dantas de Souza

Graduado em Geografia pela Universidade Federal de Goiás e integrante 

do Grupo de Pesquisa em Teoria e Metodologia da Geografia – GEOtema.

E-mail: dallysdantas@gmail.com



[1] O livro, que contém quase quinhentas páginas, fora publicado pela primeira vez em 1939. Foi considerado “o mais completo, profundo e preciso sobre Metodologia da Geografia”, conforme palavras de Fábio de Macedo Soares Guimarães no prefácio da primeira edição brasileira de Perspectives on the Nature of Geography. Contudo, ainda é pouco conhecido e lido no Brasil em função de ainda não haver tradução para a língua portuguesa.

[2] Em 1969, no Rio de Janeiro, o Instituto Pan-Americano de Geografia publica a primeira edição da referida obra em língua portuguesa sob o título “Questões sobre a natureza da Geografia”. Já em 1978, a editora HUCITEC da Universidade de São Paulo reedita e publica o texto, desta vez intitulado “Propósitos e natureza da Geografia”. É esta segunda edição que nos valemos para a elaboração deste texto.

[4] Vale lembrar a data em que Hartshorne escreve esse livro, o ano de 1959, quando o homem ainda não havia “alcançado” a lua. Tal “conquista” só se realizaria 10 anos depois, quando os Estados Unidos lançaram a primeira nave tripulada (Missão Apollo 11) que supostamente pousara no satélite terrestre.

 

___________________________________________________________________________________________________________________
Ficha bibliográfica:
 
SOUZA, Dallys Dantas de. Richard Hartshorne: do estudo da diferenciação de áreas à integração de fenômenos heterogêneos. In: Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.4, n.6, 29 de outubro de 2014. [ISSN 22380-5525].