ROÇAS TATUADAS - Ricardo Oliveira
Fonte: Rede Gazeta, 2022. Fonte: Rede Gazeta, 2022.
O senhor mire e veja, não quero tomar seu tempo com esse proseio. Mas já que encostou aqui nessa paragem, sente, tome um café e vamos tocar dois dedos de prosa. Olha, veje bem, o senhor que anda pelo mundo, vê coisas que eu não vejo. Mas repare, não bote sal no que vou dizer, nem sempre ver significa que a gente coloca o miolo para pensar sobre o visto. A gente as vezes vê sem ter visto. É porque num guarda na memória, num pergunta porque as coisas é assim desse jeito, tem essa arrumação, se podia ter outra.
O senhor me desculpa de tomar seu tempo, a vida anda tão corrida, mas as vezes carece de frear a corrida para pensar sobre a carrera. As coisas mudam muito rápido e carece de pensar sobre a mudança. A propósito, nesse fio de prosa, veje bem!!! De uns tempos para cá parece que as coisas desmancham no ar. O dia, à noite, a paisagé, a cidade, tudo sofre de celeramento. O Senhor mesmo, não se avexe, sente um pouco, tome um folego, depois tome a rédea do caminho. Conversá as vezes desanuvia a cabeça da gente. Bem, esse celeramento do mundo dizem que é tal da modernidade. Os meus vizinhos daqui dizem que isso é muito bão, traz o tal do desenvolvimento.
Mas uma coisa me incabula. Será que esse trem é bão mesmo de forma igual, será que tudim que é feito é bão para todo mundo. Tenho ruminado muito sobre isso, porque a gente carece de desconfiar das coisas que a gente escuta, vê e olha. O Senhor tenha paciência, minha conversa é assim mesmo. Conversa vagarosa, de rodear toco, de dá volta feito rio já desacelerado. Mas mire e veja, eu sempre vou na festa de Trindade, modê olha o Pai Eterno. A gente não sabe reza muito, mas a gente olha e mostra respeito para iluminar as correrias da vida.
Meu pai foi agricultor afamado nessa região, conhecia de um tudo, do tempo certo para plantá, colhê, cortá a madeira, podá as frutíferas. Ele não sabia lê palavra, mas lia a lua, o céu, o sol, o cantar dos passarim, o florear das árvores. Também era bom peão, corria esse sertão atrás de rés perdida, trazia pró curral com seu laço de couro cru. Quando desceu de Minas nos idos de 40 para Goiás ele trouxe tudo que é semente, de milho, de arroz, de legume, de frutífera. Num sei se o Senhor se alembra, mas tinha uma ciência para plantá o milho, o arroz, o feijão.
Nós era uns menino miradim, mas já ajudava no preparo da semente. Alembro que papai iá no paiol e escolhia as melhores espigas, tirava ali os grãos da ponta e do pé, os grãos do meio era o mais graúdo e servia para plantá a roça. Sabe, eu fico pensando naquele tempo, a gente tinha milho para pamonha, milho para tratar de galinha, milho para fubá. Porque não sei se o Senhor sabe, milho que passa a grana rápido e é mais duro não é bom para pamonha, milho duro é bom para galinha, modê elas demoram mais sentir fome, mantém o papo cheio mais tempo.
A roça num era fácil não, isso lá é verdade. Porque tudo era nos braço: machado para derrubada da mata, fogo para limpar as árvores derrubada, ajuntamento dos tronco e galho que num foi queimado, o tal do coivaramento, nova queimação dos monte ajuntado e plantio das semente. Eu vô falar para o senhor, era muito trabalho, o caboclo tinha de arrochar no serviço senão não dava conta não. Ví muito caboclo deixar roça morre no mato. Mas quando o milho, o arroz estava assim crescido, nós iá na roça, as vezes pegá uma melancia, um melão, uma abóbora plantada entremeio as leiras e a gente ficava feliz com a beleza da plantação.
Papai sempre iá com a gente, ele gostava de vê o resultado do nosso trabalho. Me alembro, papai parava em frente ao milharal, assim num ponto mais alto. Os olhos briozo, o peito arfando do cansaço da subida, ele tirava o chapéu, passava as costas da mão na testa, retirava o suor ajuntado e transpirava um ar de realização com a plantação. Ficava um tempo em silêncio nessa contemplação. O milho estava esverdeado escuro, as folhas largas, cada cana de pé dessa grossura, as bonecas já estavam apontano. Ele arfava o peito novamente, soltava um ar de calmaria e em seguida resumia: “É, mas está uma beleza, a roça está bonita, vai dá uns dez carros de milho, ôhhh... esse ano vai cê de fartura!!!!
Papai dava meia volta, ajeitava o chapéu na cabeça, olhava para o céu, agradecia a Deus o bom tempo e saia feliz do roçado. O Senhor mire e veja, parece que alí papai determinava a roça e por ela era determinado. Meio assim, parece que ele fabricava a roça e era por ela fabricado. Claro, nem todo mundo tinha a sorte de papai, dono da sua roça, não tinha de pagar tributo a patrão, como muitos dos nossos vizinhos tinham de fazer. Aquela dureza de trabalho, o sujeito preparava, plantava a roça, cuidava, colhia e depois repartia no meio com o dono da terra. E isso num era o bastante, ainda tinha de entregar pasto formado, modê o patrão ter pastagem para colocar o gado.
O senhor espere mais um pouco, dizem que a espera permite a gente decidir melhor o caminho caminhado. Mas como eu estava dizendo, nessa ida a Trindade a gente não vê só o Divino Pai Eterno, lá pelos rumos de Itaberaí, Inhumas, Goianira uma coisa me chamou atenção. Vi umas placas nessas roças que a gente perde de vista, nessas roças fabricava com trator, colhedeira, agrotóxico, adubo comprado. Papai dizia que essa roça a gente num tinha controle, quem controlava era a casa agropecuária, modê de que a semente, o adubo, a derrubada da mata carecia de comprar o insumo.
O senhor mire e veja, papai num lia palavra, mas aprendeu a ler o mundo, ele num registrou esses conhecimentos no papel, talvez até fosse de alguma serventia para gente matutar sobre a tal da modernidade. Mas ele colocou uma pulga atrás da minha orelha com essa sabedoria, faltava eu arrematá o raciocínio, fecha a porteira. Na ida a Trindade, quando eu olhei essas roças, daí veio na minha cabeça as conversas de papai com os vizinhos, nas rezas de São João, São Pedro, Santa Luzia, Nossa Senhora da Aparecida. Fiquei pensando... bem, essa roça num é nossa, nós num tem o domínio dela, isso papai já dizia. Mas será que esse fazenderão, dono disso tudo também domina essa plantação, ou ele só reproduz o que outros de fora manda.
Mas quem é esses de fora, é o dono da casa agropecuária? Matutei, percebi na hora que o pensamento de papai esbarrava aí. Se eu quisesse desnuviar o mistério tinha de caçar ideia que ajustasse uma explicação. Vi aquelas placas, coisa estranha, nunca tinha visto assim roça emplacada. Já vi gado marcado, uma espécie de tatuagem, quase igual essas figuras que esses meninos novos uso no corpo. A marca de gado é coisa antiga, desde os tempos dos zagai, quando gado era criado na larga, os mais antigos chamavam de ferro, era modê determina quem era dono.
Mas roça tatuada nunca tinha visto, nossas roças num tinha isso. Daí pensei, certo é modê determina quem é dono, mas aí eu fiquei confuso. O dono num era aquele fazenderão? Os miolos num encontrou uma resposta assim de imediato, o pensamento iá e vinha e nadinha de novidade. De repente, o pensamento retornou para o gado marcado, determinei a ideia de que o gado tatuado dizia quem era dono dele, nem sempre quem era dono da terra. Então desembaracei a questão, a roça tatuada num queria dizer quem era dono da terra, mas quem era dono da semente, a modernidade torno a semente propriedade, e num era dono o dono da casa agropecuária e nem o fazendeiro.
A semente tinha nome e tinha dono. Eles num moravam na roça, nem na rua onde a gente iá fazer compra. A maioria era dos estrangeiros, tinha dono maior, que eles chamam de majoritário e dono menor, que é os minoritários, cada um tem um pedaço, chama esse pedaço de ação. Fiquei sabendo que os proprietários da semente, que produz as roças tatuadas são as multinacionais. Ainda tem roça como a do meu pai por aí, mas a maioria desmanchou no ar, a modernidade trouxe a modernização, nós que determinava a roça passamos a ter nossos plantios determinados pela roça tatuada, viramos de fabricador de semente em consumidor.
O Senhor mire e veja, para a arrematar nossa prosa, num sei se isso é bão para nós. A melhoria da semente é uma coisa boa, desde que nós dominamos a melhora, a semente. Mas nesse caso proseado não é o que acontece. Os pequenos do campo nesse brasilsão de meu Deus além de antes cê explorado pelos grandões dono de terra, agora também são depenados pelos grandões do estrangeiro, os tais donos dos insumos. Por isso que eu digo, o povo pensa que nós somos do miolo mole, pensa pouco, mas cá no meu canto eu sei que a tal da modernidade foi que criou a tal da roça tatuada. O Senhor tolere, essas coisas podem num ser de nenhuma serventia para vossa pessoa, mas quem sabe ajuda alguém pensar sobre a caminhada do mundo.
POR:
RICARDO OLIVEIRA
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