UMA INCURSÃO HISTORIOGRÁFICA ÀS DOENÇAS DO CORPO E DA ALMA A PARTIR DE PORTUGAL DO SÉCULO XVIII - Fernanda Soares Rezende & Henrique Martins da Silva

05/09/2015 12:00

As florestas do passado nos deixam pistas de diversas doenças que acometeram distintas civilizações e sociedades em inúmeros lugares. As narrativas de viajantes ou de historiadores sobre guerras, conquistas e crises, mencionam doenças muito conhecidas, como a peste negra, a lepra ou escorbuto. Com a Expansão Marítima Europeia e o advento das Grandes Navegações a partir do final do século XV, surge também um ambiente dentro das Naus, propício ao aparecimento de doenças e moléstias nocivas aos tripulantes. As condições de higiene, má alimentação associada ao longo tempo em alto mar, são as principais causas para a debilidade física e mental desses homens.

Nesse contexto, faz-se necessário um olhar crítico sobre elementos fundamentais à manutenção da vida e que pertencem ao campo da medicina. As práticas médicas possuem uma importância capital para se compreender não somente o tratamento das doenças, mas também a realidade social e cultural do período. Com efeito, essa medicina foi pensada em relação a outros saberes e até mesmo crenças. Como forma de pensar essas relações tomamos como base as ideias de um médico nascido em Paracatu, Minas Gerais, chamado Francisco de Melo Franco[1] (1757-1823).

Melo Franco, propôs uma aproximação entre medicina e teologia, o que chamava de medicina teológica. Segundo o mesmo, a sociedade portuguesa ao final do século XVIII, passava por problemas que ele denominou de os “piores pecados”, representados pela Lascívia, a cólera e a bebedice[2]. Esse contexto histórico da medicina no mundo português deve-se a formação médica do autor na Universidade de Coimbra. No entanto, esses “pecados” não podem ser confundidos com os Sete Pecados Capitas de São Tomás de Aquino. Trata-se, em síntese, de uma aproximação entre os saberes teológicos e médicos, diferente da escolástica tomista, que propunha uma articulação entre teologia e filosofia. Sobre isso, Tarcila Nienow afirma que:

Na perspectiva do médico formado em Coimbra, o emprego desta medicina asseguraria o “bem viver”, já que, através do emprego de certos procedimentos terapêuticos – descritos ao longo dos vinte e três capítulos da obra –, os confessores poderiam melhor aconselhar os fiéis católicos, garantindo, assim, a saúde de seus corpos e mentes. Buscando remediar estas doenças, Melo Franco recomendava tratamentos à base de medicamentos e de exercícios, enfatizando que somente os médicos possuíam a competência necessária para descobrir as causas desses males e curá-los (2014, p. 951).

Dessa forma, haveria uma interligação entre corpo e alma por meio dessa Medicina Teológica. Os chamados “remédios morais” por Melo Franco, como jejuns e orações não eram suficientes para o suposto enfermo, pois agiriam apenas na alma, negligenciando o corpo físico. Com isso, o médico receitava, por exemplo, para os apaixonados, antes que essas paixões pudessem causar mal a saúde, licores amargos ou azedos e para os coléricos, bebidas doces. Também, contra os sintomas dos males das paixões, eram receitadas por ele atividades físicas pesadas ou até mesmo orações como forma de distrair o enfermo.

O amor era visto por Melo Franco como uma enfermidade que poderia causar desvios de virtude, como cólera, melancolia e bebedice. A cólera seria uma doença causada pelo excesso de paixões, embora a melancolia estivesse associada à saudade da pátria ou da separação do objeto amado. Esse sentimento melancólico também estava acompanhado de nostalgia que poderia causar privação de apetite e fraqueza que se fazia necessário uma terapia ocupacional para o enfermo quando da impossibilidade de resgatar o objeto amado. Em virtude disso, o autor considerava os melancólicos “fracos de espírito”.

Quanto à bebedice, o médico afirma os benefícios do vinho à saúde, mas salientava sobre o consumo em excesso que poderia se transformar em uma enfermidade. Em muitos casos, receitava aos pacientes beber até provocar vômito, como forma de estimular uma repulsa a bebida, afastando o vício. Havia também outras prescrições contra esse vício, como ingestão de água fria em jejum pela manhã, banhos frios ou que o paciente molhasse somente as genitálias com água fria como meio de evitar que os vapores de álcool se agitassem no corpo.

Eram diversas as prescrições do autor para os males do corpo e da alma, muitas colocadas à crítica. No caso dos religiosos, segundo o médico, eles só poderiam ser médicos de almas se soubessem também curar os corpos físicos. Isso garantiria o “bem viver” em sua opinião, pois os confessores poderiam, dessa forma, melhor aconselhar e possivelmente curar os seus fiéis. Sobre isso, o autor assinala que:

A Teologia prática, o ofício de Confessor, é só do que devo tratar, segundo aquele respeito que os faz Médicos das almas, e que para bem cumprirem as suas obrigações lhes é preciso saberem a Medicina do corpo. Nesse sentido é que digo ser bom Confessor o que é bom Médico, e que entre milhares deve ser escolhido aquele que melhor tivesse unido a ciência das enfermidades da alma com as do corpo, e soubesse em que tudo remediar as deste para curar as daquela. (FRANCO, 2008 [1994], p. 21-22). 

Portanto, percebe-se o esforço feito por Melo Franco na tentativa de unificar corpo e alma no tratamento de doenças que acometiam as pessoas de seu tempo. É sabido que esse autor não foi o único a pensar a medicina dessa forma, mas sua obra, bem como suas práticas são fundamentais para compreender o próprio processo de desenvolvimento da medicina, suas ramificações, saberes auxiliares e mentalidades socioculturais do povo português no final do século XVIII.

 

Referências bibliográficas:

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ABREU, Jean Luiz Neves. A educação física e moral dos corpos: Francisco de Mello Franco e a medicina luso-brasileira e fins do século XVIII. Estudos Ibero-Americanos. PUCRS, v. XXXII, n. 2, p. 65-84, dezembro 2006.

ABREU, Jean Luiz Neves . Nos domínios do corpo: o saber médico luso-brasileiro no século XVIII. 1. ed. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2011. v. 1. 220p

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EDLER, Flávio Coelho; FONSECA da Fróes Raquel Maria. Saber Erudito e Saber Popular na medicina colonial. Cadernos ABEM. v.2, 2005

FRANCO, Francisco de Melo. Medicina teológica. São Paulo: Giordano, 1994.

HIPÓCRATES. Conhecer, cuidar, amar: o juramento e outros textos. São Paulo: Landy, 2002.

LE GOFF, Jacques. A doença tem história. Lisboa: Terramar, 1985

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SCLIAR, Moacyr. História do conceito de saúde. PHYSIS: Revista de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 17(1): 29-41, 2007.

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SILVA, Inocêncio Francisco da. “Medicina Theologica”. In: Dicionário Bibliográfico Português. Lisboa: Imprensa Nacional de Lisboa, 1859-60. v. 7.

 

 

Fernanda Soares Rezende

fernanda.soares.ufg@gmail.com

Henrique Martins da Silva

henriquemartins.silva@yahoo.com.br

Mestrandos em História pela Universidade Federal de Goiás



[1] Autor de um manual de práticas médicas intitulado: Medicina Teológica ou súplica humilde feita a todos os Senhores Confessores, e Diretores, sobre o modo de proceder com seus Penitentes na emenda dos pecados, principalmente da Lascivia, Colera e Bebedice. Obra específica em análise.

[2] As informações foram retiras do artigo de Tarcila Nienow Stein: Sobre Ébrios, Lascivos e Coléricos; Os corpos enfermos na obra de Francisco de Melo Franco (1794).  

 

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Ficha bibliográfica:

REZENDE, Fernanda Soares; SILVA, Henrique Martins da. Uma incursão historiográfica às doenças do corpo e da alma a partir de Portugal do século XVIII. Territorial - Caderno Eletrônico de Textos, Vol.5, n.7, 5 de setembro de 2015. [ISSN 22380-5525].